PONTO DE VISTA DE ELLA O ronronar baixo do motor era o único som constante dentro do carro. O asfalto passava rápido sob os pneus, levando a gente para longe do lugar onde Vivian havia morado. Olhei de canto para ela no banco do passageiro. O rosto dela estava virado para a janela, mas eu pude ver a linha tensa do ombro começando a relaxar um pouco. O ar parecia menos pesado do que minutos atrás, um silêncio diferente, não de mágoa, mas de cansaço e talvez um começo de alívio.
Segurei o volante com as duas mãos, sentindo a vibração leve do carro. Foi a coisa mais simples que eu pude fazer quando ela ligou, a voz pequena do outro lado da linha. "Vem me buscar", ela disse, e o resto não importava. Eu disse a ela, na hora, sem pensar duas vezes: "Vem para casa. Você fica comigo, Demétrio, e Dante. Por quanto tempo precisar."
Vivian suspirou baixinho e então falou, ainda olhando para fora:
"Obrigada. Obrigada mesmo. Por isso. Por tudo."
A voz dela estava rouca, cheia de gratidão, e um nó se formou na minha garganta. Apertei um pouco os dedos no volante.
Ela é minha única irmã.
O pensamento veio forte e claro. A única. A mais nova também. Sempre um pouco perdida, precisando de um empurrão, ou de um lugar seguro para cair. Voltar para a casa da nossa mãe, no Arizona, era o que todos esperavam, mas não era o que ela queria. E eu entendia. Nossa mãe tinha suas próprias dificuldades, e Vivian precisava de paz, não de mais perguntas ou julgamentos disfarçados de preocupação.
Não respondi na hora. Só continuei dirigindo, a paisagem desfocada passando pela janela dela, a minha mão firme no volante. Minha casa é grande o suficiente, nosso filho, Dante, de quinze anos, já entende um monte de coisa, meu marido Demétrio sempre está fora de casa. Era o lugar certo para ela estar agora. O único lugar certo.
O silêncio voltou, mas agora era um silêncio compartilhado, cheio de coisas não ditas, mas entendidas. Continuei dirigindo para casa.
O silêncio não durou muito. Depois de alguns minutos, com a paisagem urbana começando a aparecer pelas janelas, Vivian virou a cabeça devagar, finalmente olhando para mim. Os olhos dela, antes fixos na rua, agora pareciam vidrados, mas com uma clareza dolorosa.
"Você não tinha obrigação, Ella", ela repetiu, a voz um pouco mais firme, mas ainda baixa. "De verdade. Sei que tem Dante crescendo, e o Demétrio... vocês têm a vida de vocês." Ela balançou a cabeça lentamente. "Salvou a minha vida, sabia?"
Meu olhar se manteve na estrada, mas senti o peso das palavras dela. Não era drama; eu sabia que não era. A situação dela era perigosa, sufocante.
"Claro que eu tinha obrigação, Vivian", eu disse, minha voz firme, tentando transmitir toda a certeza que eu sentia. "Você é minha irmã. A única, e eu faria tudo por você."
Um sorriso triste e rápido passou pelo rosto dela antes que a expressão voltasse a ficar séria. Ela se ajeitou no banco, virando o corpo um pouco mais na minha direção. A mão dela se moveu hesitante, depois parou no meu ombro.
"As coisas ficaram muito ruins, Ella", ela começou, a voz diminuindo de novo, como se estivesse com medo de ser ouvida. "Você não faz ideia."
Senti o estômago gelar. Eu suspeitava, claro. As ligações raras, a voz dela sempre um pouco tensa, as desculpas para não vir nos visitar. Mas ouvir dela...
"Ele não gostava que eu falasse com ninguém", Vivian continuou, a frase saindo meio picada. "Nem com você. Se eu demorava a responder uma mensagem, ele ficava furioso. Queria saber onde eu estava, com quem, toda hora. Era como se eu fosse uma coisa dele, sabe?"
Minhas mãos apertaram o volante mais forte. Respirei fundo, tentando manter a calma para que ela continuasse falando, para que sentisse que podia desabafar tudo. A raiva começou a subir pela minha garganta.
"E as coisas que ele dizia..." A voz dela tremeu agora. "Dizia que eu era burra, que não servia para nada. Que ninguém mais me aguentaria. Me fazia sentir tão pequena, Ella. Tão inútil." Uma lágrima solitária escorreu pelo rosto dela, refletindo a luz dos postes que passávamos. "Me afastava de todo mundo. Disse que você... que nossa mãe... que ninguém se importava de verdade comigo. Só ele."
Eu sabia que era ruim, mas ouvir os detalhes cruéis... Era pior do que eu imaginava, ouvindo essas coisas, sendo tratada assim. Era preciso um esforço enorme para não parar o carro ali mesmo e gritar.
Continuei dirigindo, o silêncio voltando, mas agora preenchido pelo eco das palavras de Vivian e pela minha própria fúria silenciosa. A prioridade agora era levá-la para um lugar seguro. Para casa.
Estacionei o carro na frente de casa, o motor silenciando depois da nossa conversa. O som de tráfego da rua diminuiu, substituído pelo silêncio familiar do bairro. Desliguei o motor, e por um instante, apenas ficamos sentadas, o ar parado entre nós, pesado com tudo que ela tinha acabado de contar.
A chave girou na porta da frente com um clique seco. O ar de dentro da casa era diferente do de fora – tinha o cheiro de casa, de limpeza. A luz azulada da TV piscava na sala, e o som abafado de golpes e a voz animada de um narrador de boxe chegavam até nós.
Dante estava lá, sentado no sofá, com os olhos fixos na tela grande. Meu filho de quinze anos, alto para a idade, concentrado na luta. Meu garoto. Ele é praticamente um lutador profissional para mim, vive e respira isso. Está sempre lendo sobre táticas, assistindo lutas, e eu estou sempre ali, controlando a dieta dele, ajudando nos treinos, garantindo que ele tenha o que precisa para seguir essa paixão. Ver ele assim, focado em algo tão dele, sempre me dá uma sensação boa.
Mas nem tudo na minha vida era tão focado e claro como o esporte do Dante.
Minha relação com o Demétrio.
O pensamento veio como uma pontada. Não estava bem. Não anda bem, para ser sincera. Tínhamos nossos próprios silêncios, nossas próprias distâncias, diferentes daquelas que Vivian acabou de deixar para trás, mas dolorosas à sua maneira. Problemas que eu guardava, que eu empurrava para o lado para lidar depois.
Mas a Vivian... ela já tem o suficiente para lidar agora.
Não posso jogar isso em cima dela. Ela precisa de um porto seguro, não de mais preocupação ou de sentir que está sendo um peso em uma casa que já está balançando. Ela precisa de paz.
Dante olhou para cima quando entramos. A surpresa no rosto dele durou só um segundo antes de ser substituída por um reconhecimento gentil ao ver a tia. Vivian sorriu para o sobrinho, com um sorriso real e cansado, talvez o primeiro que eu via nela hoje. Dante levantou-se, o corpo desajeitado de adolescente, e Vivian foi até ele. Eles se abraçaram rápido, mas com firmeza. Um abraço que parecia dizer: "Que bom que você está aqui." Meu filho era um garoto tão bom.
"Vamos, Vivian", eu disse suavemente, tirando a chave da porta. "Vou te mostrar onde você vai ficar."
Guiei-a pela sala iluminada pela TV e pelo corredor. O quarto de hóspedes estava pronto. Lençóis limpos na cama arrumada, as cortinas já estavam fechadas para a noite. Era um lugar tranquilo, simples, esperando por ela. Vivian entrou, parecendo pequena no meio do cômodo, olhando em volta como se não tivesse certeza de que era real.
Não a deixei sozinha no quarto na hora. Fechei a porta devagar, o som suave no ambiente calmo. Sentei na beira da cama que seria dela, e Vivian se sentou também, meio encolhida ao meu lado. O colchão macio afundou um pouco sob nós, um pequeno conforto depois de tudo. A luz do abajur no criado-mudo criava um círculo quente no canto.
Vivian olhou para as mãos no colo por um momento, brincando com a barra da blusa. Quando levantou os olhos, havia uma nova ponta de medo neles, diferente do medo anterior.
"Ella...", ela começou, a voz baixa e incerta. "Você acha que o Demétrio não vai se importar se eu ficar aqui? Ele é... ele parece tão... sei lá. Tão ocupado." Ela hesitou. "Não quero atrapalhar."
Um suspiro interno escapou de mim.
O Demétrio.
Ocupado é pouco. Ele é dentista, um dos melhores da cidade, desses que a agenda vive lotada meses à frente. Sai de manhã cedo, volta tarde da noite. Muitas vezes trabalha nos fins de semana também. Mal o vejo em casa, de verdade. Nossas conversas se resumem a um "oi", "tudo bem" rápido antes de ele desabar na cama.
As coisas esfriaram entre a gente, sim.
Ultimamente, parece que moramos na mesma casa, mas em vidas diferentes. Duas pessoas em órbitas separadas, cruzando só de vez em quando.
E o Dante... ah, isso me dói.
O Demétrio não entende essa paixão do filho pelo boxe. Não se interessa, não apoia de verdade. Não pergunta dos treinos, das lutas que o Dante assiste com tanta concentração. É como se ele não visse o quanto isso é importante para o filho, o quanto o Dante se dedica.
Eu larguei meu emprego, o emprego que eu tinha como assistente dele na clínica.
Fiz isso justamente para ter tempo. Tempo para levar o Dante para os treinos que são longe, acompanhar a dieta rigorosa, estar junto, ser a base dele. Para ajudar ele a se tornar... sim, um grande lutador no futuro, se for isso que ele quiser de verdade. Um futuro que o pai parece ignorar.
Olhei para Vivian, para o medo nos olhos dela. Ela já tinha passado por tanto.
"Não se preocupe com isso, Vi", eu disse suavemente, tentando manter minha voz leve, afastando meus próprios pensamentos sombrios para longe dela. Toquei a mão dela no colchão. "A casa é grande. Tem espaço. E o Demétrio... ele quase não fica em casa mesmo por causa do trabalho, você mal vai esbarrar com ele. Quando ele estiver, ele vai entender."
Não era totalmente verdade. Não sabia se ele entenderia se Vivian permanecesse por muito tempo. Mas era o que ela precisava ouvir agora. E, de certa forma, a ausência dele tornava a situação dela aqui mais simples, menos intrusiva.
Ela assentiu devagar, parecendo absorver minhas palavras e encontrar um pouco de alívio nelas. Vivian se deitou em seguida e virou-se para o outro lado da cama. Ela parecia tão cansada.
Levantei da cama com cuidado para não incomodá-la, mesmo sabendo que ela provavelmente não dormiria logo. A conversa, o cansaço, o alívio e o medo misturados deviam estar pesando nela. Saí do quarto de hóspedes, fechando a porta devagar, deixando-a naquele pequeno refúgio de paz. O corredor estava mais escuro, um caminho silencioso de volta para o resto da casa.
Voltei para a sala. A luz azulada da TV ainda piscava, iluminando o rosto concentrado de Dante. O som da luta de boxe ainda estava lá, com um ritmo constante de impactos e narração. Ele estava na mesma posição no sofá, imerso no mundo dele de ringues e luvas.
Ele se virou no sofá quando me ouviu chegar perto.
"Mãe...", ele disse, a voz ligeiramente distraída pela luta na tela. "Quanto tempo a tia Vivian vai ficar?"
Fui até a ponta do sofá e me inclinei um pouco.
"O tempo que ela precisar, filho", respondi, minha voz suave. "Até ela se sentir pronta para decidir o que fazer, para se sentir segura de novo."
Um brilho de satisfação apareceu nos olhos dele. "Legal!", ele disse, voltando a olhar para a TV, mas com um sorriso no rosto. "Que bom! Assim ela vai poder assistir minhas lutas." Ele se virou de novo, animado. "A próxima já está marcada, mãe! Você viu?"
Sorri para ele, um sorriso de verdade que alcançou meus olhos. Meu garoto, mesmo focado no esporte, pensando na tia. Era bom ver essa conexão entre eles.
"Vi sim, filho", respondi. "Vamos conversar sobre isso depois, tá bom? Agora a mãe precisa ir fazer o almoço."
Fui para a cozinha, deixando-o com sua luta. Abri a geladeira, pensando no que eu podia fazer para Vivian se sentir um pouco melhor, um pouco mais em casa. Preciso fazer algo que a console, que a lembre de tempos mais simples, que a anime.
O prato favorito dela.
Sim, uma boa macarronada bem temperada. Isso sempre a fazia sorrir.
Comecei a pegar os ingredientes na geladeira e nos armários. O som leve das panelas sendo movidas, o cheiro inicial dos primeiros temperos começando a se misturar no ar. Cozinhar era uma forma de cuidar, de mostrar amor. E Vivian precisava disso agora, mais do que nunca.
Enquanto a água para o macarrão começava a aquecer e eu picava o queijo, ouvi o som familiar da chave girando na porta da frente. Passos conhecidos ecoaram no corredor. Demétrio chegou. Ouvi ele parar primeiro na sala, o som da maleta de trabalho sendo deixada em algum lugar – talvez no sofá, perto de onde Dante ainda assistia à luta. Depois, os passos firmes vieram na direção da cozinha.
A porta da cozinha se abriu e ele entrou. Alto, com a expressão cansada de quem passou muitas horas no consultório. Havia algo a mais no ar, uma certa rigidez nos ombros dele.
Ele já sabia que eu ia buscar a Vivian.
Eu tinha avisado mais cedo por vídeo chamada, que estava saindo para ir buscá-la. E na curta conversa que tivemos, eu também tinha falado que ela ficaria aqui por enquanto. Não gostou muito da ideia na hora. Franziu a testa, disse que a casa já era cheia, que ia dar mais trabalho. Vivian morava longe com o marido, em outra cidade; ele quase nunca a via, não tinha uma relação próxima com ela. Talvez por isso não visse por que ela precisava vir para cá, ou talvez só não quisesse mesmo mais uma pessoa dentro de casa.
Ele não disse nada ao entrar. Só ficou ali, parado perto da porta, me olhando enquanto eu mexia nas panelas. O silêncio dele às vezes era pesado, um muro invisível.
"Oi, Demétrio", eu disse, sem parar de mexer a colher no molho branco que começava a engrossar.
Ele assentiu com a cabeça, finalmente. "Oi." A voz dele estava rouca de cansaço.
"A Vivian chegou", eu continuei, virando um pouco para encará-lo, secando as mãos em um pano de prato. "Está no quarto de hóspedes. Cansada." Olhei bem nos olhos dele. "Ela passou por muita coisa. Por favor, trata ela bem enquanto ela estiver aqui. Ela precisa de paz."
Ele sustentou meu olhar por um segundo, a expressão difícil de decifrar, depois desviou para a panela no fogão.
Último capítulo