Conheci o Demétrio no colégio.
Ele era o capitão do time de futebol, o astro que todos admiravam, o futuro promissor. Eu era a líder de torcida que namorava o capitão, a garota perfeita aos olhos de todo mundo. Assim que terminamos o último ano, descobri que estava grávida. Sim, grávida aos dezessete anos. Nossa antiga cidade... a mesma da minha mãe. Pequena, com ares de interior. As oportunidades para um dentista recém-formado com a ambição que ele tinha eram limitadas lá. Então eu aceitei sair. Mudar de cidade. Deixar para trás minha mãe, meus amigos, a vida que eu conhecia. Para que o Demétrio tivesse mais oportunidade de trabalho. Para a carreira dele, para o 'futuro' que construímos.
Um futuro que agora parecia tão cheio de espaços vazios. Com ele distante, esgotado pelo trabalho que priorizou, e o filho sentindo a falta de apoio dele na paixão que move sua vida. E eu, que larguei meu próprio trabalho para me dedicar a esse futuro, agora me via no meio de uma casa grande, tentando juntar os pedaços da vida de minha irmã e os da minha própria.
Voltei a atenção para o molho, mexendo devagar. O cheiro do queijo começando a derreter preencheu o ar da cozinha. Um cheiro de conforto, de infância. Era o que Vivian precisava. Era o que talvez todos nós precisávamos.
O cheiro do macarrão com queijo começava a se espalhar pela cozinha, um aroma reconfortante. Eu mexia o molho devagar, pensando na Vivian e na minha própria vida.
"Vou subir", Demétrio disse, quebrando o silêncio entre nós. Ele ainda estava perto da porta da cozinha. "Dar um 'oi' para a Vivian e tomar um banho antes do almoço."
Assim que ele falou isso, ouvi passos conhecidos no corredor. Dante entrou na cozinha, vindo da sala. Ele olhou do pai para mim, depois de voltar para o pai. Sua atenção no boxe ainda estava presente, mas havia algo mais que ele precisava saber.
"Pai", Dante disse, a voz um pouco hesitante, mas com uma ponta de esperança. "Você vai na minha próxima luta? Daqui a um mês?"
Demétrio suspirou, passando a mão no cabelo de trás para frente, um gesto que eu conhecia bem quando ele estava prestes a dar uma desculpa. "Ah, filho...", ele começou, sem olhar diretamente nos olhos do Dante. "Sabe como está na clínica. Muita gente agendada. E sem uma assistente fica uma loucura cumprir tudo a tempo." Ele deu de ombros. "Mas... vou ver. Tento dar um jeito."
"Vou ver". A frase que eu mais ouvia ultimamente. A forma educada de dizer 'provavelmente não'. Meu coração apertou um pouco ao ver a esperança no rosto do Dante se misturar com a decepção familiar, mesmo que ele tentasse disfarçar. Ele só queria ouvir um 'sim, filho, estarei lá'. Mas recebeu um 'vou ver'.
Demétrio não esperou por uma resposta ou um comentário do Dante. Deu um aceno rápido para nós dois – um para mim, outro para o filho – e saiu da cozinha, com os passos subindo a escada logo depois. O som dele se afastou ecoou no silêncio que ficou.
Dante ficou olhando para a escada por um momento, a animação de antes sumindo um pouco do rosto, substituída por aquela leve tensão adolescente. Depois se virou para mim, a expressão mudando de novo, focada agora no que ele controlava.
"Mãe?", ele disse, a voz diferente agora, prática. "Você fez minha dieta certinha? Com a chegada da tia Vivian e tal..."
"Claro, filho", eu disse, dando um sorriso para ele, tentando afastar a pontada que senti com a interação dele com o pai. Peguei a colher e voltei a mexer o molho cremoso. "Tudo nos conformes. Pode ficar tranquilo."
O macarrão com queijo ficou pronto, cremoso e cheiroso na travessa grande. Dante estava comigo na cozinha, me ajudando a arrumar a mesa que ficava ali perto, no espaço integrado da sala de jantar. Ele pegava os pratos, os talheres, os copos, com a eficiência silenciosa de quem já faz isso há anos. Trabalhávamos juntos em um ritmo familiar, o cheiro delicioso da comida quente se misturava ao ar. A mesa ficou posta para quatro.
Ouvi passos na escada. Não eram apenas os passos firmes de Demétrio que eu reconhecia; havia passos mais leves também. Vivian e Demétrio desceram juntos.
Eles vieram direto para a cozinha/sala de jantar, o centro da casa. E estavam conversando. E... rindo? Ali na nossa frente, enquanto Dante e eu terminamos de arrumar a mesa.
Meus olhos se arregalaram um pouco sem que eu pudesse evitar, e eu parei o que estava fazendo na hora. Demétrio tinha trocado de roupa, parecia um pouco menos cansado, mas a surpresa real foi ver a Vivian ao lado dele, com uma expressão relaxada, os dois trocando palavras e um som leve de risada enquanto se aproximavam da mesa que estávamos arrumando. Senti o olhar do Dante por um segundo ao meu lado, talvez notando minha surpresa também, mas ele não disse nada.
Algo apertou meu coração.
Um nó estranho se formou no meu peito. Faz tanto tempo que não ouço uma risada assim vinda dele dentro dessa casa. As risadas de Demétrio aqui eram raras, substituídas por suspiros de cansaço ou silêncio pesado. E agora ele estava rindo com a Vivian, com a minha irmã que ele mal conhece. Eles pareciam... à vontade um com o outro. Como amigos de anos, compartilhando uma piada interna que eu não entendia. Era... inesperado. Desconcertante.
Eles chegaram à mesa. Demétrio disse algo como "Pronto para o almoço?" com um sorriso leve para Vivian, que ainda sorria de volta. Eles se sentaram em seus lugares: Demétrio na ponta, de frente para mim, Vivian se acomodando ao lado de Dante. Dante e eu terminamos de pôr os últimos copos e nos sentamos também, quebrando o pequeno momento de surpresa que nos envolveu ali na cozinha.
Peguei a travessa grande de macarrão com queijo, ainda borbulhando um pouco, o queijo derretido puxando fios apetitosos. Comecei a servir, colocando uma porção generosa no prato de cada um. A normalidade da ação contrastava com a estranha sensação que a descida deles tinha me causado.
Servi cada um deles, com os pratos cheios de macarrão com queijo cremoso e cheiroso. O silêncio inicial era apenas o som agradável dos talheres tocando a cerâmica e o leve barulho de mastigar. Começamos a comer, o conforto da comida simples e saborosa preenchendo um pouco do espaço.
Depois de alguns minutos, comemos um pouco em silêncio, cada um perdido em seus pensamentos ou apenas aproveitando a comida. Então Demétrio quebrou o silêncio, direto como sempre, olhando para Vivian do outro lado da mesa.
"Vivian...", ele disse, a voz sem muita emoção, como se estivesse perguntando sobre o tempo. "Você pretende se divorciar do Marcos?"
O garfo de Vivian congelou no ar, a massa ainda enrolada nele. O sorriso leve que ela tinha momentos atrás desapareceu por completo. Pude ver os cantos dos olhos dela ficarem vermelhos na hora, e lágrimas começarem a se formar ali, brilhando perigosamente. Ela engoliu em seco antes de responder, a voz quase sussurrou.
"Sim", ela respondeu, olhando para o prato. "Eu... sim, Demétrio. É isso que eu quero." Ela respirou fundo, tentando controlar a emoção. "Já estou falando com um advogado. Um da minha confiança, lá da cidade da mamãe."
Ela baixou o garfo no prato com um pequeno tilintar. "Preciso recomeçar do zero, sabe?", ela continuou, a voz um pouco mais firme agora, mas ainda trêmula. "Arrumar um lugar só para mim, ter meu próprio dinheiro de novo. Me livrar disso tudo." Ela olhou para mim, com os olhos marejados. "Quero arrumar um trabalho."
Um clique aconteceu na minha cabeça. Trabalho. Demétrio.
Depois que sai da clínica, ele ainda não tinha arrumado outra assistente.
Lembrei da conversa dele com o Dante, da preocupação com a agenda cheia. Que a clínica estava uma loucura por causa disso. Olhei para o Demétrio, depois para a Vivian, e a ideia, simples e perfeita, tomou forma na minha mente.
"Demétrio...", eu disse, ganhando a atenção dele. Ele parou de comer e me olhou. "Você não está sem assistente na clínica? Precisando de alguém urgente?" Virei minha cabeça para Vivian, que parecia confusa com a minha interrupção, mas atenta. "Vivian... você acabou de dizer que precisa de um trabalho?" Olhei de volta para ele, juntando os pontos alto e claro. "Ela poderia te ajudar lá no consultório? Pelo menos por um tempo?"
Demétrio pareceu surpreso com a sugestão. Parou de comer, largou o garfo no prato. Franziu a testa, claramente pensando. "Ella...", ele disse, a voz hesitante. "Não sei. A Vivian... ela tem experiência nisso? A clínica é bem movimentada, o ritmo é puxado. É preciso alguém que saiba lidar com agenda, pacientes, telefone... Talvez ela não seja capacitada para a função." O jeito que ele falou, o tom de dúvida, me irritou um pouco.
"Ela aprende rápido, Demétrio!", eu disse, talvez com mais firmeza do que o tom da mesa de jantar pedia. "Sempre foi esperta, organizada. Pode aprender o que precisar. Agendar, atender telefone, receber os pacientes... não é um bicho de sete cabeças, e ela está desesperada por uma chance de recomeçar." Olhei para Vivian, que olhava de um para o outro, nervosa, e depois de volta para ele, suavizando minha voz, mas não a determinação. "Por favor", eu pedi, minha voz mais suave agora, mas séria. "Dá uma chance para ela. É só um teste. Uma semana. Se ela não servir, tudo bem. Mas ela precisa muito disso agora. E você precisa de ajuda."
Ele pensou por um momento longo, olhando para Vivian, que parecia esperançosa e nervosa ao mesmo tempo, os olhos ainda um pouco vermelhos. Dante olhava para o pai, em silêncio, sentindo a tensão no ar. Demétrio suspirou, parecendo ceder mais pela minha insistência e pela situação de Vivian do que por estar convencido de cara.
"Tá bem", ele disse, finalmente, pegando o garfo de novo, parecendo já pensar na logística. "Posso... posso fazer um teste. Uma semana como Ella sugeriu, no máximo duas. Se der certo, a gente conversa sobre o resto. Pode começar amanhã de manhã. Esteja lá às oito em ponto. Não se atrase."
O rosto da Vivian se iluminou de uma forma que eu não via há muito tempo. Não era só alívio; era esperança genuína, pura felicidade e gratidão. Era a chance que ela precisava. Ela largou o garfo, se levantou da mesa tão rápido que a cadeira arranhou o chão com um barulho alto. Ignorou o barulho, veio até o meu lado e me deu um beijo forte na bochecha, me pegando de surpresa.
"Obrigada! Muito obrigada, Ella!", ela disse, a voz embargada pela emoção. Seus olhos brilhavam com as lágrimas contidas, mas agora eram lágrimas de alegria e alívio.
Duas semanas se passaram desde aquele almoço inesperado. Duas semanas em que a casa ganhou um novo ritmo. Vivian se deu muito bem no novo emprego na clínica do Demétrio. Ela era rápida em aprender, organizada, e parecia gostar do movimento. Era bom vê-la ocupada, com um propósito, dando os primeiros passos nesse recomeço que tanto precisava.
Mas eu comecei a notar algo. Pequenas coisas no começo, que se tornaram mais claras com o passar dos dias. Vivian e Demétrio... se tornaram amigos. Mais do que chefe e funcionária, mais do que cunhados que se viam pouco. Passavam o dia juntos no trabalho, e isso se estendia para fora de lá. Sempre chegavam tarde em casa, muitas vezes ouvi o barulho do motor do carro na garagem e as vozes baixas deles conversando ali por mais alguns minutos antes de entrarem.
Teve uma noite que acordei com sede no meio da madrugada. Desci na calada da noite, a casa escura e silenciosa. Mas a luz da sala estava acesa. Eles estavam lá. Demétrio sentado no sofá, com uma das pernas apoiada no joelho da outra, Vivian no chão perto dele, encostada no móvel, parecendo relaxada. Estavam conversando baixo, e então ouvi de novo. A risada é leve e solta de Demétrio. A mesma leveza que eu ouvi naquele almoço, agora na escuridão da noite, compartilhada com ela. Parei no corredor, observando sem ser vista por um momento, sentindo o frio da noite no meu pijama. Aquela risada fazia tanto tempo que não a ouvia dirigida a mim.
Estranhamente, mesmo com a distância crescente entre mim e Demétrio, nunca passou pela minha cabeça que ele estivesse me traindo. Pelo menos não do jeito clássico, com outra mulher qualquer por aí. Nossa vida sexual não era apaixonada como no começo, nem tínhamos encontros românticos, mas era a vida sexual de um casal normal. A gente ainda se conectava fisicamente de vez em quando. Então a ideia de ele ter alguém além de mim nunca era algo que eu cogitei seriamente, algo que me preocupasse de verdade.
Mas a Vivian mudou desde que veio morar conosco. A vulnerabilidade, a tristeza, a necessidade de refúgio que ela tinha no carro, no almoço... parecia ter desaparecido. Ela estava mais vibrante, sim, por causa do trabalho, mas a conexão entre a gente, a cumplicidade de irmãs, parecia ter diminuído. Ela quase não conversava mais comigo sobre as coisas dela, sobre o trabalho, sobre como estava se sentindo. Se eu perguntava algo, respondia rápido, meio distraída, e logo mudava de assunto ou ia fazer outra coisa.
E parecia confiar mais no Demétrio do que em mim agora. Falava com ele sobre o trabalho com entusiasmo, discutia detalhes do dia na clínica, ria das piadas dele. Comigo, um silêncio estranho se instalou entre nós.
Eu sentia falta dela. Da minha irmã, que veio buscar refúgio e parecia ter encontrado um novo lar ou uma nova amizade, que de alguma forma me excluía. E sentia falta do Demétrio também. Do marido que estava fisicamente presente, dividindo a casa, a cama, mas cada vez mais distante em pensamentos e em momentos compartilhados. E agora ele compartilhava risadas e conversas que não compartilhava comigo, com a minha própria irmã.
Apesar de tudo, apesar da distância e dos problemas que a gente não falava, eu ainda nutria sentimentos por ele. O Demétrio do colégio, o pai do meu filho, o homem com quem eu construí uma vida, largando tudo para estar ao lado dele. Eu ainda queria que déssemos certo. E vê-lo tão à vontade com ela, tão leve e risonho, doía de um jeito que eu não esperava, apertando aquele nó estranho no meu peito.