Lucy tinha um dever e sempre esteve ciente dele, por isso se casou com Richard, mas após a morte de seus pais, ela descobre da pior forma possível, que Richard planeja se livrar dela e assumir a família. Agora, ela precisa do divórcio, e precisa de uma aliança capaz de manter a si mesma e a seu irmão, a salvo. E quem poderia ser melhor para isso do que Silas Desmond, o primo de Richard e também, um homem poderoso, conhecido por sua imparcialidade, frieza e incapacidade de amar algo além de si mesmo.
Leer másO sol filtrava-se pelas grandes janelas de vidro da ala leste da mansão Donovan, tingindo o mármore branco com tons dourados que faziam tudo parecer mágico — ou talvez só mais uma manhã comum na casa em que nasci. Não importava quantas vezes acordasse ali, aquele lugar ainda me arrancava suspiros. Havia uma sensação de eternidade naquela propriedade, como se as paredes sussurrassem histórias de gerações que viveram, amaram e caíram nos mesmos lugares onde agora eu caminhava.
Minha xícara de chá ainda soltava fumaça quando me acomodei no banco de madeira entalhada do jardim de inverno, ladeado por trepadeiras e roseiras em flor. Entre as mãos, um exemplar antigo de Madame Bovary, presente de minha mãe em meu aniversário de quinze anos — e que eu jamais terminei. A ironia não passava despercebida: uma história de paixões sufocadas em meio a convenções sociais, lida por mim, Lucy Donovan, filha de um banqueiro europeu e de uma dama de linhagem nobre, prestes a aceitar um casamento arranjado sem nem ao menos perceber que era arranjado.
Meu irmão mais novo, Jasper, tinha prometido me encontrar para cavalgarmos após o café, mas como sempre, devia estar perdido em alguma distração — talvez treinando salto com o novo cavalo ou provocando os cozinheiros. Com apenas doze anos, Jasper era uma mistura encantadora de travessura e sensibilidade. A luz da nossa casa.
Antes que eu pudesse me perder demais nos pensamentos, minha mãe surgiu na varanda, com passos silenciosos e firmes. Lilian Donovan era o retrato da sofisticação contida — cabelos presos em um coque baixo, vestido em tons de creme e ouro, e um colar de pérolas que fora passado por gerações.
— Lucy, querida — disse com suavidade. — Pode me acompanhar por um instante?
Fechei o livro sem hesitar e a segui por entre as portas de vidro. Caminhamos até o salão azul, um dos meus preferidos, onde as janelas davam para o lago. Ela sentou-se em uma das poltronas de veludo e me ofereceu a outra, de frente para ela.
— É sobre Richard — ela começou, e não me surpreendi.
— Imaginei — respondi, tentando disfarçar o nervosismo com um sorriso contido.
— Você gosta dele?
Pensei por um instante.
— Gosto.
Eu disse e não era completamente mentira. Eu gostava. Gostava da maneira como ele segura a porta para mim, do jeito como ele escuta quando eu falo... Gostava da calma que ele transmite. E ele é gentil, mãe. Muito gentil.
Ela me observava como se tentasse medir a profundidade do meu afeto, com aquela paciência sutil que só mães treinadas em diplomacia conhecem.
— Mas você o ama?
— Não — respondi, firme. — Mas... talvez um dia venha a amar. O que sinto por ele... é o suficiente. É mais do que muitas pessoas têm, não é?
Ela assentiu, como se eu tivesse passado algum teste.
— Amor, minha querida, é um luxo. Respeito, estabilidade e lealdade... esses são os alicerces de uma vida longa e tranquila. E Richard pode te oferecer tudo isso.
Permaneci em silêncio por alguns instantes. A verdade é que eu não me sentia pressionada. Era quase como se o mundo ao meu redor já tivesse decidido meu destino, e eu estivesse apenas... aceitando.
O som de passos correndo no corredor interrompeu nossa conversa. Jasper irrompeu pela porta com sua camisa desabotoada, cabelo desalinhado e olhos brilhando de animação.
— Lucy! Mãe! Vocês viram minhas botas de montaria? O cavalo novo me odeia, e se eu aparecer atrasado de novo, ele vai me derrubar só de birra.
Minha mãe suspirou, mas havia um sorriso em seus olhos. Eu me levantei e fui até ele, alisando sua gola e beijando sua testa.
— Estão no depósito de selas. Eu mesma vi você largando-as lá ontem, fingindo que não era sua responsabilidade guardar.
— Você me espiona?
— Eu sou sua irmã mais velha. Espionar você é minha obrigação moral.
Ele sorriu e saiu correndo, gritando algo sobre apostar corrida depois das aulas. Eu me virei de volta para minha mãe, que agora observava o jardim com uma expressão mais suave.
— Jasper é nosso maior presente — ela disse.
Assenti.
— Eu faria qualquer coisa por ele.
— Eu sei. É por isso que estou tranquila.
Antes que eu pudesse perguntar o que ela queria dizer com isso, ouvimos o som de um carro estacionado no pátio principal. Minha mãe se levantou imediatamente, organizando mentalmente os próximos passos, como se fosse uma rainha prestes a receber visitas diplomáticas.
— Venha. Vamos receber seu pai.
Descemos juntas as escadas principais, nossos passos ecoando pelos corredores altos. O aroma de lavanda e madeira encerada preenchia o ar. Quando chegamos ao saguão, as portas já estavam abertas e dois homens entravam: meu pai, Cameron Donovan, com seu usual terno azul-marinho impecável, e ao lado dele... Richard.
O tempo pareceu desacelerar. Richard estava especialmente elegante, trajando um paletó cinza claro e uma gravata bordô. Seus cabelos loiros estavam perfeitamente penteados, e aquele sorriso... Ele sempre soube sorrir como se o mundo estivesse em paz.
— Lucy — ele disse, vindo em minha direção com passos firmes. Ele pegou minha mão e beijou meus dedos, um gesto antiquado que, vindo dele, parecia natural.
Eu senti o calor subir ao meu rosto, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele se ajoelhou.
O salão inteiro ficou em silêncio.
— Lucy Donovan — começou ele, tirando uma caixinha de veludo do bolso interno do paletó. — Desde que nos conhecemos, tenho visto em você tudo o que admiro em uma mulher: elegância, força, compaixão... e beleza. Seria uma honra compartilhar minha vida com você. Aceita se casar comigo?
Minha respiração travou. Eu olhei para minha mãe, que mantinha um sorriso tranquilo. Meu pai, ao lado dela, apenas assentiu com orgulho. Jasper apareceu do nada, ofegante, e gritou:
— Aceita logo, Lucy!
Todos riram. Eu também.
E então disse o que, até então, me parecia natural:
— Sim.
Richard se levantou e colocou o anel no meu dedo — uma joia delicada, com uma pedra de safira envolta por pequenos diamantes. Tudo nele era perfeito.
Como ele.
Naquele momento, eu me senti completa. Como se estivesse exatamente onde devia estar. Como se o mundo finalmente tivesse se alinhado para me oferecer tudo o que sempre me foi prometido.
Algumas dores não gritam. Elas sussurram.E o sussurro da desconfiança é o mais difícil de ignorar.Fazia dois dias desde que voltei do hospital, e ainda não conseguia sentir que aquela casa era minha de novo. Cada corredor parecia mais largo. Cada sombra, mais longa. A luz das janelas era mais pálida do que eu lembrava. E os passos de Richard... mais medidos. Como se ele não andasse, mas escolhesse onde pisar. A casa onde Jasper e eu crescemos, agora parecia um verdadeiro caixão e Richard era como um coveiro, pronto para enterrar o que havia restado da família Donovan. Ele era gentil. Comedido. Cuidadoso até demais.Mas havia algo na sua voz que não pertencia mais ao homem com quem eu me casei. Como se ele tivesse memorizado as palavras certas, mas esquecido como usá-las com verdade, ou como se quase não fizesse mais diferença se ele as usava de forma correta ou não.Eu tentei afastar esses pensamentos no começo, tentei me convencer de que era apenas uma impressão errada, — que Ric
O sol parecia diferente quando finalmente saí do hospital, como se o mundo quisesse me dizer “parabéns por ainda estar viva”, e uma parte minha, realmente estava agradecida, — mas era impossível não achar toda aquela situação, minimamente bizarra. — Não pense muito, — Chiara me disse enquanto me abraçava com cuidado e se despedia de mim, — você está voltando pra casa, tente focar em se recuperar 100%, em acalmar Jasper. Ele...Assenti.— Sim, eu sei... ele quase me perdeu, — murmurei, porque no fim, eu estava preocupada com meu irmãozinho, mas... estava ainda mais preocupada por ele não ter ido me visitar.Jasper estava quieto desde a morte de nossos pais, e por mais que eu entendesse, era ainda assim, alarmante. Ele já não sorria tanto, não andava pela casa procurando algo novo para se ocupar, sequer tocava no cavalo que havia insistido tanto para que nosso pai comprasse. Ele tinha se tornado soturno, — e agora, comigo metido em um acidente como esse, — ele sequer havia ido me visit
Escuro.Tudo o que havia era escuro.Uma ausência absoluta de som, de dor, de pensamento.Mas então, um ruído.Sutil. Como um pulso eletrônico, lá no fundo.bip... bip... bip...Uma respiração lenta, profunda, que não era minha. Ou era?Não sabia.O que eu sabia, na verdade, era quase nada.Lentamente, os sentidos começaram a me invadir como invasores silenciosos em campo minado. A pele sentia o tecido áspero de lençóis que não eram meus. Havia cheiro de desinfetante, plástico, soro. Um zumbido constante no fundo da cabeça. A luz além das pálpebras parecia querer cortar meus olhos.Eu existia, de novo. Mas por quê?Por um momento, desejei que não.— Lucy...?A voz era suave, feminina, ansiosa.Forcei as pálpebras. Foi como tentar erguer um telhado desabado. A luz me atravessou com violência. Mas abri mesmo assim.O teto era branco. Estéril. Um tubo pendia acima de mim. E ao lado... a silhueta de uma mulher de avental azul, segurando uma prancheta e um tablet. Ela sorriu quando percebe
Tudo aquilo me parecia uma farsa bem encenada. A decoração, os sorrisos polidos, as alianças reluzentes — até os votos pareciam ter sido escritos por um roteirista de telenovela desesperado por audiência.Mas farsa ou não, pagava bem.Eu sabia que o nome Desmond vinha gravado com letras douradas, mas que valia pouco se comparado ao que herdaria o ramo principal da família — o ramo do qual Richard, meu primo ambicioso, era a última joia embutida num cetro podre.Era claro para todos que eu, Silas Desmond, era mais apto. Seis anos mais velho, mais discreto, educado onde ele era apenas ensaiado. Enquanto Richard passava a vida tentando provar que merecia um trono, eu havia construído meu império em silêncio — tijolo por tijolo, contrato por contrato.Mas o sangue... ah, o sangue falava mais alto. E o sangue dele, por mais turvo que fosse, vinha direto da veia-mãe da linhagem.Por isso eu assistia de camarote. A cerimônia. Os discursos. O modo como Richard segurava a cintura de Lucy Donov
O luto não é uma linha reta.Ele vem em ondas.Em um segundo você está respirando — no outro, afunda.Às vezes eu sentia que estava flutuando sobre uma vida que não era minha. Como se me visse de fora, atravessando cômodos com passos contidos, vestida de preto, mas sorrindo para convidados em jantares que eu não lembrava ter aceitado. Outras vezes, o peso me puxava pelo tornozelo no meio de uma frase, e eu perdia o ar, a lógica, a força.Perdi meus pais, minha casa, e com eles, um pedaço do que me fazia reconhecer a mim mesma.Agora, eu era Lucy Donovan-Preston. Esposa de um homem que me tratava como se eu fosse feita de vidro decorativo. Irrepreensível. Bela. Frágil.Nos mudamos para a mansão da família Donovan quatro dias após o enterro. Richard me disse que seria melhor para Jasper, mais seguro, mais estruturado. Eu concordei. Como uma boneca com pilhas fracas.O carro que nos levou até a nova casa cortava a cidade com suavidade. Do lado de fora, tudo se movia: carros, prédios, pes
Eu achei que sabia o que era perder.Achei que crescer era um processo lento, silencioso — feito de escolhas e maturidade e acordos assinados com sorrisos educados.Mas perder, de verdade? Isso não é uma lição.É um golpe. Um rasgo. Um grito que ninguém ouve, mas que você sente ecoar dentro do seu peito por horas, dias, talvez para sempre.Naquele dia, eu acordei com o som dos pássaros cantando nos jardins.A brisa era doce. O sol atravessava as cortinas de linho com a mesma delicadeza de sempre. Eu estava casada. Tinha uma casa, um sobrenome forte, um futuro.Tudo parecia... certo. Estável. Confortável, ainda que morno.Richard estava fora, mais uma vez. Uma reunião, um almoço, um investidor — tanto faz. Não era importante. Ele raramente era importante nos meus dias, embora ocupasse cada canto da minha vida.Chiara chegou no fim da tarde. Trazia macarons e vinho branco, e nós nos sentamos na varanda de trás como fazíamos antes de tudo virar um roteiro de cerimônia.Ela falava de algu
Último capítulo