Eu descobri da pior forma que o luto não é uma linha reta.
Ele vem em ondas, uma após a outra. Mas isso não quer dizer que melhora — bem pelo contrário. Você se acostuma com ele. Com a sensação de vazio constante. E quando se dá conta, já não sabe mais como é viver fora daquela zona escura onde se colocou.Em um segundo, você está respirando — no outro, afunda.
Às vezes, eu sentia que flutuava sobre uma vida que não era minha. Como se me visse de fora, atravessando cômodos com passos contidos, vestida de preto, mas sorrindo para convidados em jantares que eu nem lembrava ter aceitado. Outras vezes, o peso me puxava pelo tornozelo no meio de uma frase. E eu perdia o ar, a lógica, a força.
Perdi meus pais. Minha casa. E, com eles, um pedaço do que me fazia reconhecer a mim mesma.
Perdi tudo — e ainda assim precisava sorrir e tentar confortar Jasper, que parecia mais apático a cada dia.Ele não falava.
Não conversava comigo. Tudo que fazia era continuar em seu quarto, como um moribundo esperando o momento de partir.Tentei me aproximar. Criar algum tipo de conexão.
Mas era como se, junto dos nossos pais, também tivéssemos enterrado o elo que nos unia.Eu sabia que precisava estar lá por ele — mas era diferente. Um vazio havia tomado conta de nós dois, e não havia muito o que fazer agora.
Agora, eu era Lucy Donovan-Preston. Esposa de um homem que me tratava como se eu fosse feita de vidro decorativo. Irrepreensível. Bela. Frágil.
Nos mudamos para a mansão da família Donovan quatro dias após o enterro. Richard me disse que seria melhor para Jasper, mais seguro, mais estruturado. Eu concordei. Como uma boneca com pilhas fracas.
O carro que nos levou até a nova casa cortava a cidade com suavidade. Do lado de fora, tudo se movia: carros, prédios, pessoas. Por dentro, eu me sentia imóvel. Como se minha alma tivesse ficado na curva onde o carro dos meus pais não conseguiu seguir.
A mansão era opulenta. Branca, simétrica, adornada com colunas romanas. Mas apesar de toda a sua imponência, ela tinha cheiro de ausência. De portas fechadas com força. De lareiras apagadas há muito tempo. Eu sabia que ali nada me acolheria.
Jasper não falou muito durante a mudança. Se trancou no quarto como era esperado, ligou o som baixo, e passou horas desenhando em seu caderno. Ele não chorava. Nunca. Mas havia noites em que eu o ouvia murmurar o nome da nossa mãe no escuro, como se estivesse sonhando. Ou rezando.
Eu queria ajudá-lo. Mas eu mesma estava à deriva.
Chiara vinha todos os dias, com doces, filmes, conversas. Tentava me arrancar da maré com afeto — mas nem ela conseguia me alcançar. Não naquele lugar. Não naquele estado.
— Você está emagrecendo — ela disse uma tarde, enquanto me observava provar um garfo de massa no jantar. — Isso tá te consumindo, Lucy. Você precisa reagir. Eu entendo que é difícil… mas…
Eu soltei um riso abafado. Irônico.
— Reagir pra quê? Pra me sentar ao lado de Richard em jantares onde falam sobre ações e política? Pra ouvir Jasper falando da escola como se tudo estivesse normal? Nada tá normal, Chiara.
Ela apertou minha mão.
— E nunca mais vai estar. Mas isso não significa que você tenha que morrer junto com eles.
Virei o rosto para não ter que ouvir mais. Na verdade, eu não me importava de morrer junto com os meus pais, mesmo que eu soubesse que não podia. Richard por outro lado, ele tentou. Ao modo dele.
Com presentes. Com convites para escapadas. Com abraços que duravam segundos e sorrisos que não chegavam aos olhos.
Naquela sexta-feira, ele surgiu no quarto com um vestido preto rendado, embalado num cabide de veludo.
— Reservei uma mesa no clube La Vigna. Jantar, música ao vivo. Só nós dois. Acho que pode ser o que você precisa por agora. Sabe… sair um pouco, respirar.
Eu hesitei. A ideia de sair parecia absurda.
Mas então me olhei no espelho — cabelo solto, olhos vazios, pele opaca. E pensei: talvez... talvez o mundo lá fora me lembre como era sentir algo, talvez eu devesse tentar, ao menos pelo homem que estava do meu lado.
Assenti sem muita vontade e respondi da melhor forma que consegui.
— Está bem…
Vesti o vestido como quem veste uma armadura. Maquiei meus olhos com precisão cirúrgica. Passei perfume nos pulsos, nos ombros. Ajoelhei para pegar um salto.
E quando me levantei... não me reconheci.
Mas fui.
O restaurante era feito de mármore, vidro e velas altas. A luz era baixa, âmbar. O vinho era francês. A música, um jazz lento que escorria pelos cantos do salão.
Richard estava bonito.
Terno bem cortado, cabelo impecável, aquele sorriso de quem sabe que pode conquistar qualquer coisa — menos o que realmente importa.
Conversamos sobre amenidades. Ele me elogiou. Eu agradeci. Rimos, brevemente. Pela primeira vez em semanas, me senti... não viva, mas desperta.
Pedi vinho.
A primeira taça me aqueceu.
A segunda... me entorpeceu.
Não foi muito. Não era sequer o suficiente, mas fez o meu mundo girar. Ele girava devagar. Meu corpo parecia mais pesado do que o normal, como se o álcool tivesse espalhado chumbo sob minha pele.
— Lucy, meu amor? Você está bem? — Richard perguntou, vendo meu olhar perdido.
Assenti.
— Só... cansada. Foi uma semana longa… — menti e ele sorriu.
Ele verificou o celular. Algo ali o fez franzir o cenho e então, ele me encarou.
— Charles está aqui, no salão dos fundos. — Murmurou, — me perdoe, eu sei que disse que seríamos apenas nós dois, mas… parece importante. Eu preciso resolver uma coisa rápida com ele. Você pode ir indo pra casa, amor. O motorista já está esperando.
— Tem certeza?
— Confie em mim. Vai descansar. Eu chego em pouco tempo. — Ouvi ele dizer com aquele tom doce que usava sempre que queria que eu “me comportasse”.
Me levantei, um pouco tonta. Ele segurou minha cintura, firme e sorriu ao dar um beijo em minha testa.
— Você está linda.
Beijei sua bochecha.
— Obrigada… eu te vejo em casa.
Ele sorriu, e sem me responder, se foi.
Eu saí. Peguei meu casaco na entrada.
A noite estava fria. Um vento leve acariciava meu rosto, e a pele arrepiava sob a renda fina do vestido. Entrei no carro, sentindo o couro aquecido pelo motor.
O motorista perguntou se estava tudo certo. Respondi com um aceno.
Me recostei no banco, com os olhos fixos no céu escuro. A lua estava alta. Inquieta. Uma moeda prateada solta demais no universo. Eu tentei colocar o cinto, mas a essa altura, minhas mãos pareciam não me obedecerem. E depois da terceira tentativa, eu desisti.
“É só 10 minutos, está tudo bem…” eu disse a mim mesma, me deixando relaxar no banco de trás.
Mas a estrada parecia mais longa do que lembrava.
Os faróis cortavam a escuridão como navalhas. O som dos pneus era quase hipnótico. Comecei a cochilar.
Mas então... algo. Um movimento brusco.
A última coisa que vi foi uma curva.
Muito fechada.
O carro perdeu a estabilidade.
Capotou.
Uma.
Duas.
Três vezes.
O vidro estourou em milhares de estilhaços que cortaram o ar como lâminas invisíveis. O teto esmagou parte do lado direito. A porta do passageiro voou. O som... era o de um mundo sendo dilacerado.
E então, silêncio.
Despertei entre ferro retorcido e cheiro de gasolina.
Meu corpo estava deitado no asfalto, fora do carro. Não sei como fui lançada. A perna esquerda... não respondia. A cabeça latejava. Sangue escorria da minha têmpora até a clavícula.
O céu girava. As luzes dos postes pareciam estrelas caindo.
Minha respiração vinha em pequenos ofegos.
Dor. Muita dor.
Tentei falar. Um gemido escapou. Minha garganta tinha gosto de ferro e medo.
Levantei a mão trêmula. Vi o colar da minha mãe... partido. As pérolas espalhadas pelo chão, como pequenos olhos brilhantes me observando morrer.
E pela primeira vez desde que tudo começou, eu senti.
Medo real.
Não da morte. Mas do que viria depois. De deixar Jasper sozinho. De morrer incompleta, sem dizer adeus, sem saber quem eu era além daquela dor.
Minha visão embaçou.
O mundo escureceu.