Tudo aquilo me parecia uma farsa bem encenada. A decoração, os sorrisos polidos, as alianças reluzentes — até os votos pareciam ter sido escritos por um roteirista de telenovela desesperado por audiência.
Mas farsa ou não, pagava bem.
Eu sabia que o nome Desmond vinha gravado com letras douradas, mas que valia pouco se comparado ao que herdaria o ramo principal da família — o ramo do qual Richard, meu primo ambicioso, era a última joia embutida num cetro podre.
Era claro para todos que eu, Silas Desmond, era mais apto. Seis anos mais velho, mais discreto, educado onde ele era apenas ensaiado. Enquanto Richard passava a vida tentando provar que merecia um trono, eu havia construído meu império em silêncio — tijolo por tijolo, contrato por contrato.
Mas o sangue... ah, o sangue falava mais alto. E o sangue dele, por mais turvo que fosse, vinha direto da veia-mãe da linhagem.
Por isso eu assistia de camarote. A cerimônia. Os discursos. O modo como Richard segurava a cintura de Lucy Donovan como se ela fosse mais um dos bens adquiridos no testamento.
Ela estava linda. Irritantemente linda.
Vestia o tipo de elegância que não se compra: aquela feita de silêncios bem medidos, de olhares que observam mais do que mostram, e da forma como as palavras dela pareciam flutuar, sempre gentis, sempre adequadas.
E foi ali, naquele ensaio infeliz, onde ela caiu sobre mim como se o universo tivesse tropeçado — que algo despertou.
Por um segundo, apenas um segundo, pensei: foi uma pena não tê-la conhecido antes.
Antes de Richard.
Antes de tudo isso virar um teatro de heranças.
Mas bastou aquele pensamento nascer para que eu o sufocasse com a mesma rapidez com que me recuso a sentir qualquer coisa desde os 27 anos. Lucy tinha 23. Jovem demais. Boa demais. Eu soube disso no instante em que ela caiu na água comigo e saiu dali, como um búfalo furioso.
Eu zombava dela para protegê-la. E, claro, para manter distância.
Afinal, o inferno dentro de mim não é lugar pra uma mulher como Lucy Donovan.
Naquela noite, meses depois do casamento, me sentei no meu escritório, como sempre faço quando o mundo decide se curvar aos tolos. A casa estava silenciosa, exceto pelo som do gelo tilintando no copo de cristal. As janelas abertas deixavam entrar o aroma dos vinhedos que cultivava apenas por capricho — nada em mim era romântico, mas eu entendia o valor estético de um vinhedo bem alinhado.
Foi quando Dante entrou. Sem bater.
Meu braço direito. Meu amigo mais antigo. O único que conhecia as partes da minha história que eu mesmo preferia esquecer.
— Acha que foi ele? — perguntou, jogando a jaqueta sobre o sofá de couro italiano, ainda com o celular na mão.
— Richard? — perguntei, sem tirar os olhos do céu escuro lá fora. — Não tenho dúvidas.
— Tá dizendo que ele matou os pais da própria esposa? Você não acha que foi um acidente?
Virei o rosto, lentamente. Olhei para Dante como se ele tivesse perguntado se o céu era mesmo azul.
— Posso não ter matado o meu pai pelo meu cargo, Dante. Mas já matei homens por menos do que ele tem a ganhar com essas mortes.
Dante se serviu de uísque sem esperar permissão. Sentou de frente pra mim.
— Que merda... isso só fode tudo.
— Por quê?
— O Lucca... — disse ele, com o copo entre os dedos. — Anda perguntando demais. Especialmente sobre o acidente.
Meus olhos se estreitaram.
— Ele é próximo do Jasper Donovan, não é?
— É. E isso me preocupa. Lucca sempre teve esse complexo de Messias. E Jasper é sensível demais. Um garoto esperto, mas... quebrado. Se alguém for arrastá-lo pra uma cruzada, vai ser Silas, se estiver por trás do acidente e adivinha... Lucca não vai perder a chance de se meter, esse idiota. Tinha que agir como um Moretti.
Moretti.
A família de Dante. Nascidos no poder. Forjados na política. Treinados na arte de mover o mundo sem levantar a voz.
Lucca era o mais novo. O mais impulsivo. E, provavelmente, o mais perigoso de todos.
— Fique de olho nos dois — disse, bebendo devagar. — Mas sem interferir. Ainda.
— E se o garoto souber demais?
— Se souber, alguém já está marcando ele na mira. — Respirei fundo, girando o gelo no copo. — E se não souber... vai descobrir, cedo ou tarde.
Dante apenas assentiu. Sabia que eu nunca falava por falar.
Algumas semanas depois, Dante reapareceu no meio da noite. A gravata ainda no pescoço, os olhos mais duros que o habitual.
— Ela sofreu um acidente — disse.
Não perguntei quem. Eu sabia.
Ele continuou.
— Sozinha. Voltando de um jantar com Richard. O carro capotou. Tá viva... por enquanto.
Fiquei em silêncio por um segundo.
Depois, sorri. Um riso seco, sem humor, sem piedade.
— Então o plano dele vai muito além de herdar o nome. Ele quer... erradicar qualquer rastro da linhagem Donovan.
Apagar. Redefinir. Roubar tudo e reescrever a história como se sempre fosse dele.
— Você parece pouco surpreso.
— Eu não fico surpreso com vermes, Dante. Eles sempre rastejam para o mesmo lugar: o topo. Não importa quem precisam devorar no caminho.
Dante hesitou antes de perguntar:
— Vai fazer alguma coisa?
Abaixei o copo. Olhei para ele. Depois para a lareira, onde o fogo crepitava baixo, como se o mundo queimasse devagar.
— Ainda não. Mas agora eu sei o que Richard teme.
— O que é?
— Que Lucy sobreviva.