Mundo de ficçãoIniciar sessão"Você vem."
A frase ficou suspensa no ar gelado do terraço, não como uma ordem, mas como uma profecia. Eu fiquei ali, sozinha, com o eco da voz dele na minha pele e as luzes de São Paulo piscando como testemunhas silenciosas da minha estupidez iminente.
O que caralhos eu estou fazendo?
A pergunta martelava na minha cabeça. Eu vim aqui para salvar a minha mãe, para conseguir uma chance, para lutar. E agora eu estava prestes a entrar voluntariamente na jaula do lobo. Por quê? Pela adrenalina? Pela curiosidade mórbida de saber o gosto do perigo? Ou por causa daquele calor sombrio e viciante que ele acendeu no meu ventre com um simples olhar?
Eu deveria virar as costas. Pegar um táxi, voltar pra minha casa, pro cheiro de tinta e de realidade. Ligar pra Carol e dizer que a noite foi um desastre. Esquecer Peter Blackwood.
Mas a imagem dele se inclinando, a boca a milímetros da minha, o sussurro de "você é uma galeria inteira"... aquilo era uma droga. E eu, de repente, precisava de mais uma dose. Só mais uma.
Com as pernas tremendo, eu atravessei a porta de volta para o museu, ignorando os olhares curiosos. Não precisei procurar. Um homem de terno preto, com um fone de ouvido discreto, me encontrou no meio do caminho. "Senhorita Vitali? Por aqui, por favor."
Era o segurança dele. O capanga. O cão de guarda. E eu era o cordeirinho sendo levado ao abate.
O carro que me esperava na saída não era um carro. Era uma nave espacial preta, um Maybach tão luxuoso que parecia humilhar os outros veículos na rua. O segurança abriu a porta traseira e o interior se revelou: um santuário de couro creme e madeira escura, banhado por uma luz âmbar suave.
E lá estava ele. Peter. Reclinado no banco como um rei em seu trono, o paletó desabotoado, a gravata levemente afrouxada. Ele não olhou pra mim quando entrei. Seus olhos estavam fixos num tablet, mas eu sabia que ele sentia cada movimento meu.
A porta se fechou com um clique abafado, e o som da cidade desapareceu. Fomos engolidos por um silêncio íntimo, pesado. O carro começou a deslizar pela noite, suave como um fantasma. O cheiro dele estava por toda parte. Couro, o perfume amadeirado dele e algo mais... ozônio, o cheiro elétrico que vem antes de uma tempestade.
"Gosta do que vê?", ele perguntou, sem levantar os olhos do tablet.
A pergunta era ambígua de propósito. Ele estava falando do carro ou dele mesmo?
"Depende", respondi, a voz mais firme agora que estávamos em campo neutro. Ou pelo menos, era o que eu tentava me convencer. "Se eu estiver olhando para uma obra de arte ou para a jaula dela."
Isso fez com que ele levantasse o olhar. E, meu Deus, a intensidade me atingiu como um soco. Sem a distração do leilão, o olhar dele era ainda mais focado, mais predatório. "A diferença, Alice, é apenas uma questão de perspectiva. Uma gaiola, para um pássaro que nunca conheceu o céu, pode ser um palácio."
"Eu conheço o céu", retruquei. "E ele não tem cheiro de couro de duzentos mil dólares."
Um sorriso lento e perigoso se espalhou pelo rosto dele. Ele largou o tablet no banco ao lado. Agora, toda a sua atenção estava em mim. A sensação era de estar sob um microscópio em chamas.
"Não? E qual é o cheiro do seu céu, artista?", ele provocou, inclinando-se um pouco na minha direção.
"Tinta spray. Solvente. Liberdade", listei, o queixo erguido.
"Liberdade..." ele repetiu a palavra como se fosse um sabor exótico. "Liberdade não paga as contas do hospital, não é? Não coloca comida na mesa. A liberdade é um luxo para quem pode pagar por ela."
O golpe foi baixo. E certeiro. Senti meu rosto queimar. Ele sabia. O filho da puta sabia de tudo.
"Você me investigou", afirmei, a voz cheia de um veneno que não o afetou em nada.
"Eu não entro em um jogo sem conhecer todas as peças do tabuleiro", ele respondeu, a voz calma, letal. "Eu sei sobre a dívida do seu apartamento. Sei sobre os tratamentos da sua mãe. E sei que você estava naquele leilão, caçando o velho Bastos como uma loba faminta, disposta a fazer qualquer coisa por uma migalha."
Ele se aproximou mais, deslizando pelo banco de couro até que sua coxa musculosa pressionasse a minha. O contato elétrico fez meu corpo inteiro se contrair. Ele pousou a mão no banco, ao lado da minha cabeça, me encurralando. Seu rosto estava a centímetros do meu.
"A diferença entre mim e ele", ele sussurrou, o hálito quente batendo no meu rosto, "é que eu não estou interessado em migalhas. Eu quero o banquete inteiro."
Seu olhar desceu para a minha boca. Eu umedeci os lábios por instinto, um erro fatal. Os olhos dele escureceram, a pupila dilatando. O desejo ali era tão palpável que eu podia prová-lo no ar. Era cru, avassalador.
"Eu te odeio", sussurrei, mas a frase soou mais como um gemido de rendição.
"Ainda não", ele respondeu, a voz um veludo áspero. "Mas você vai. Você vai me odiar por fazê-la desejar o que nunca pensou em querer. Vai me odiar por gostar tanto."
Sua mão se moveu do banco e seus dedos roçaram a pele nua do meu ombro, exposta pelo vestido. O toque foi leve, quase acidental, mas enviou uma onda de choque direto para o meu centro. Meus mamilos enrijeceram sob o tecido, uma traição descarada do meu corpo.
Ele viu. O sorriso vitorioso em seus lábios me disse que ele tinha visto minha reação.
O carro parou. Olhei pela janela e vi um portão de ferro forjado se abrindo para revelar a entrada de um prédio que parecia um monólito de vidro e escuridão apontado para o céu.
"Chegamos", ele disse, se afastando, deixando-me ofegante e com a pele em chamas.
O segurança abriu minha porta. Peter saiu pelo outro lado. Eu fiquei sentada, o coração martelando, o corpo vibrando. Eu não sabia onde estava, mas sabia de uma coisa: eu tinha acabado de atravessar o portão do inferno.
E o diabo estava me esperando do lado de fora, com um sorriso que prometia todos os pecados do mundo.







