Capitulo 04

Cinco milhões.

A cifra ecoava na minha cabeça, abafando os aplausos educados e os cochichos chocados ao nosso redor. O martelo do leiloeiro tinha soado como uma sentença de morte para a minha sanidade. Ele não tinha comprado só um quadro. Ele tinha comprado o ar do meu pulmão.

Sem dizer uma palavra, Peter se levantou. O movimento foi fluido, elegante, e carregado de uma expectativa silenciosa. Ele esperava que eu o seguisse. Uma parte de mim, a parte sensata que ainda gritava em algum canto empoeirado da minha mente, berrava pra eu correr. Correr pra longe daquele terno, daqueles olhos, daquele poder todo.

Mas a outra parte... ah, a outra parte. A parte mais sombria, a artista curiosa que sempre foi atraída pelo abismo, estava fascinada. Ela queria ver até onde a toca do coelho ia. E foi essa parte que fez minhas pernas se moverem, seguindo-o como se um fio invisível me puxasse pela alma.

Ele não me levou para a saída. Me guiou por um corredor lateral, abrindo uma porta de vidro pesado que dava para um terraço. O ar frio da noite paulistana bateu no meu rosto, um choque bem-vindo depois do calor sufocante lá dentro. As luzes da cidade se espalhavam abaixo de nós como um tapete de diamantes quebrados. Era lindo. E eu me sentia na beira de um precipício.

Ele parou perto do parapeito de vidro, as mãos nos bolsos, o perfil dele recortado contra o brilho da metrópole. Fiquei a uma distância segura. Ou pelo menos, tentei.

"Que porra foi essa lá dentro?", disparei, a raiva finalmente vencendo o choque. Minha voz saiu mais rouca do que o normal.

Ele se virou para mim lentamente. A luz da cidade brincava nas sombras do seu rosto, tornando-o ainda mais perigoso. "Chama-se leilão, Alice. Achei que uma artista como você soubesse o conceito." O sarcasmo dele era uma lâmina fina e gelada.

"Não se faça de idiota", retruquei, dando um passo à frente. A adrenalina me deixou corajosa. Ou estúpida. "Você não queria aquela pintura."

"Não?", ele arqueou uma sobrancelha. "E o que eu queria, então? Ilumine-me com sua intuição artística."

O desgraçado estava se divertindo. Ele estava brincando comigo. "Você queria provar alguma coisa. Que pode comprar o que quiser, quando quiser. Um showzinho de poder patético."

Ele riu. Uma risada baixa, gutural, que vibrou no meu peito mesmo a distância. "Patético? Querida, se eu quisesse fazer um show de poder, eu compraria este museu e colocaria o seu nome na porta. O que eu fiz lá dentro..."

Ele deu dois passos, eliminando o espaço seguro entre nós. Fui recuando até sentir o vidro gelado do parapeito contra as minhas costas. Encurralada. O cheiro dele me envolveu, intenso, masculino. Meu coração disparou.

"...foi comprar sua atenção", ele terminou, a voz um sussurro que era pura seda e veneno.

Ele estava perto. Perto demais. Eu podia ver as nuances de cinza em sua íris, a forma como sua mandíbula se contraía. Ele levantou a mão e, por um segundo, achei que ele ia me tocar. Em vez disso, seu dedo indicador traçou uma linha no ar, a centímetros do meu rosto, descendo pela minha bochecha, meu pescoço, até parar na altura do meu coração. Eu prendi a respiração, meu corpo inteiro formigando com a antecipação daquele toque que nunca veio.

"Você é confrontadora", ele observou, o olhar queimando o meu. "Gosto disso. Mostra que a jaula de ouro do quadro ainda não te serve."

"Eu nunca vou caber numa jaula", sibilei entre os dentes.

"Toda criatura selvagem diz isso", ele rebateu, a voz perigosamente suave. "Até provar o gosto do que há dentro dela."

O desejo era uma onda de calor que subia por mim, tão avassalador que me deixou tonta. Eu odiava aquele homem. Odiava seu poder, sua arrogância, a forma como ele me lia com tanta facilidade. Mas meu corpo... meu corpo era um traidor. Ele se inclinava na direção dele, buscando o calor, a promessa de combustão que existia entre nós.

"O que você quer de mim, Blackwood?", perguntei, a voz finalmente quebrando.

O sorriso dele voltou, lento e devastador. Ele se inclinou, sua boca pairando a milímetros da minha. Eu podia sentir o hálito quente dele, provar a tensão no ar. Meu corpo gritava pra eu fechar a distância, pra sentir o gosto daquela boca, pra saber se o beijo dele seria tão cruel e delicioso quanto o resto.

"Eu não coleciono arte, Alice", ele sussurrou, os lábios quase roçando os meus. "Eu coleciono sentimentos raros. Rebeldia. Desejo. Medo." Seu olhar desceu para a minha boca e voltou para os meus olhos, agora escuro, pesado de intenção. "E você... você é uma galeria inteira."

Ele se afastou, deixando um vácuo gelado onde seu corpo estava. O ar voltou aos meus pulmões com uma urgência dolorosa.

"Meu carro está esperando lá embaixo", ele disse, já se virando para a porta. Não era uma pergunta. Era uma declaração. Um fato. "Você vem."

E então ele se foi, deixando-me sozinha no terraço, com o coração na mão e uma escolha impossível para fazer. Seguir o diabo para o seu inferno particular ou correr e passar o resto da vida me perguntando como seria queimar.

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