Mundo de ficçãoIniciar sessãoO ar noturno de São Paulo bateu no meu rosto com a força de um tapa gelado.
Lá fora, o mundo era um oceano de luzes elétricas piscando no abismo de concreto. O barulho do trânsito era um zumbido distante, abafado pelo vento que bagunçava o meu cabelo e fazia a seda fina do vestido de Carol colar nas minhas pernas.
Eu abracei meu próprio corpo, tentando parar de tremer. Não era só frio. Era a gravidade daquele homem parado ao meu lado.
Peter Blackwood caminhou até o parapeito de vidro. Ele não olhou para a vista milionária. Ele apoiou os cotovelos na borda, o terno escuro recortado contra a cidade brilhante, e olhou para mim.
O silêncio entre nós não era vazio. Era pesado. Carregado.
— Você está com frio — ele constatou. Não foi uma pergunta.
Antes que eu pudesse responder, ele se moveu. Com uma fluidez que desmentia o tamanho dele, ele tirou o paletó. O cheiro de sândalo e calor corporal me envolveu antes mesmo que o tecido tocasse meus ombros.
Ele colocou o paletó sobre mim. O peso do tecido era sufocante e protetor ao mesmo tempo.
— Eu não preciso da sua caridade — murmurei, segurando as lapelas do casaco instintivamente porque, Deus, era quente.
— Não é caridade, Alice. É investimento. — Ele se encostou no parapeito, cruzando os braços sobre o peito, onde a mancha do meu champanhe ainda escurecia a camisa branca. — Eu cuido do que é meu.
— Eu não sou sua.
— Ainda. — A palavra pairou no ar, suspensa e inevitável.
Ele me olhou nos olhos, e a intensidade cinzenta me prendeu no lugar.
— Vamos pular a parte da dança social? — ele disse, a voz baixa, cortando o vento. — Eu não te trouxe aqui para falar sobre o clima ou sobre a qualidade questionável do champanhe que você jogou em mim.
— Você me trouxe aqui porque é um colecionador obcecado que comprou meu quadro — rebati, tentando recuperar o controle.
— Eu comprei o quadro porque ele era um grito de socorro, Alice. — A voz dele mudou. Perdeu a ironia. Ficou dura. Real. — "Fúria Silenciosa". Vermelho e preto. Mas o que me chamou a atenção não foi a cor. Foi o preço.
Ele deu um passo em minha direção.
— Você vendeu uma obra-prima por três mil reais. O suficiente para pagar exatamente um mês de aluguel atrasado e duas semanas de medicação da sua mãe.
O chão sumiu sob os meus pés.
O vento pareceu parar. O som da cidade morreu.
— O que você disse? — Minha voz era um fio estrangulado.
Peter não recuou. Ele não pediu desculpas. Ele invadiu minha alma com a precisão de um cirurgião.
— Lúcia Vitali. Cinquenta e dois anos. Diagnóstico reservado, mas agressivo. O tratamento no SUS está demorando. Você está se afogando em dívidas, pintando murais em becos para conseguir trocados, e veio a esta festa hoje não para fazer networking, mas para se vender para um verme como o Bastos na esperança de que ele pagasse a próxima rodada de exames.
As lágrimas queimaram meus olhos, quentes e humilhantes. Ele sabia. Ele sabia de tudo. A minha armadura de "artista rebelde" caiu aos pedaços, deixando apenas a filha apavorada.
— Você me investigou... — sussurrei, o horror misturado com a violação.
— Eu fiz minha due diligence. — Ele estendeu a mão e, com a ponta do dedo, levantou meu queixo, forçando-me a encará-lo. O toque dele era fogo no gelo da noite. — Eu não entro em um negócio sem saber o valor do ativo.
— Minha mãe não é um negócio! — gritei, batendo na mão dele.
— Não. Ela é a sua fraqueza. — Ele agarrou meu pulso no ar antes que eu pudesse recuar. O aperto era firme, mas não doloroso. Era uma âncora. — E é a minha moeda de troca.
Ele me puxou um passo para mais perto. Nossos corpos quase se tocavam. Eu podia ver os cílios dele, a textura da pele barbeada, a escuridão infinita naquelas íris cinzentas.
— Eu tenho uma proposta, Alice.
— Vá para o inferno.
— O inferno é onde você está agora, assistindo a mulher que você ama morrer porque você não tem dinheiro. — A brutalidade da verdade me fez arfar. — Eu posso te tirar de lá.
Ele soltou meu pulso e gesticulou para a cidade iluminada atrás dele, como se ela pertencesse a ele. E talvez pertencesse.
— Eu tenho os melhores médicos na minha folha de pagamento. Tenho acesso a tratamentos experimentais na Suíça que o Bastos nem sabe que existem. Eu posso transferi-la hoje à noite. Agora. Uma ligação minha, e ela terá a melhor chance de vida que o dinheiro pode comprar.
Eu olhei para ele. A oferta era um bote salva-vidas no meio do oceano. Mas eu sabia que havia um arpão escondido.
— E o que... — engoli o nó na garganta. — O que você quer em troca?
Peter Blackwood sorriu. E não foi um sorriso de "malícia" ou "joguinho". Foi um sorriso de fome absoluta.
Ele se inclinou, a boca roçando a minha orelha, enviando um arrepio violento por toda a minha espinha.
— Eu quero a exclusividade. Eu quero a sua arte. Eu quero o seu tempo. Eu quero que você more na minha casa, coma na minha mesa e pinte com a minha tinta.
Ele fez uma pausa, e a mão dele deslizou para a minha cintura, por baixo do paletó, queimando através da seda do vestido.
— E eu quero que você seja minha. De todas as formas que eu decidir que você deve ser.
Ele se afastou o suficiente para me olhar nos olhos, prendendo-me na armadilha.
— A vida dela... pela sua liberdade. O que me diz, minha artista?







