Capítulo 4

Helena acordou antes do despertador.

O céu de Londres ainda estava cinzento quando ela calçou os sapatos pretos, prendeu o cabelo num coque ainda mais apertado que nos dias anteriores e respirou fundo diante do espelho manchado do banheiro.

Ali não havia espaço para falhas. Nem para distração.

O metrô chegou lotado, mas ela nem notou o empurra-empurra. Na mente, repetia cada detalhe do dossiê que revisara até a madrugada: cláusulas de rescisão, tabelas de valuation, notas fiscais antigas que revelavam mais do que pareciam.

Quando entrou no saguão da Valente Enterprises, era sete e meia. Um segurança a reconheceu e acenou com a cabeça, e ela atravessou os portões de vidro como quem já pertencia àquele mundo.

Seja indispensável, repetiu em silêncio.

No sétimo andar, o Setor de Estratégia já fervilhava em telefonemas e relatórios. Helena deixou a bolsa na mesa e seguiu pelo corredor até a Sala 12B.

Era maior do que imaginara. Uma mesa oval de madeira escura ocupava quase todo o espaço. Janelas panorâmicas deixavam entrar a luz branca e fria da manhã.

Três advogados estavam sentados de um lado, pastas abertas. Arthur Valente estava de pé, apoiado na quina da mesa, lendo um documento com a testa levemente franzida.

Ele ergueu os olhos quando Helena entrou.

— Sente-se, senhorita Costa.

Ela manteve o rosto sereno.

— Bom dia.

Arthur não respondeu. Apenas voltou ao papel, como se a saudação fosse irrelevante. Um dos advogados — um homem calvo, com óculos de armação grossa — pigarreou.

— Começaremos pelo adendo contratual da Technova. Existem divergências na cláusula de confidencialidade que podem impactar nossa posição fiscal.

Helena sentou-se ao lado de um analista que ela não conhecia. O crachá dele dizia Daniel. Parecia mais nervoso que ela — tamborilava os dedos na lateral da cadeira como se fosse explodir a qualquer segundo.

Arthur passou algumas folhas para ela, sem preâmbulo.

— Quero que compare com os arquivos que revisou ontem. Verifique se há omissões intencionais.

Helena pegou os documentos e começou a ler. A voz dos advogados era um zumbido distante. Cada linha parecia conter armadilhas sutis: datas trocadas, valores arredondados, expressões ambíguas.

— Aqui. — Ela ergueu os olhos. — No parágrafo sete. O termo cessão de know-how aparece sem delimitação temporal. No original em francês, estava restrito a cinco anos. Aqui, virou indefinido.

Por um instante, ninguém falou. O advogado calvo pareceu incomodado.

— Tem certeza?

— Absoluta. — Helena girou o documento e apontou a linha exata. — Cession de savoir-faire pour une durée maximale de cinq ans. Isso foi omitido na tradução.

Arthur inclinou-se um pouco. Os olhos dele pousaram primeiro no papel, depois nela.

— Bem observado.

Havia algo na voz dele — uma nota mais baixa, quase surpresa.

— Vamos corrigir isso. — Arthur entregou o documento de volta ao advogado. — Continuem.

O resto da reunião se arrastou por quase duas horas. Helena anotou tudo, sem perder uma vírgula. Quando finalmente foi dispensada, o analista ao lado dela saiu tão apressado que esqueceu o crachá sobre a mesa.

Ela recolheu o crachá e o deixou sobre a cadeira dele. Ao virar-se, deu de cara com Arthur. Ele continuava ali, observando-a como se tentasse adivinhar seus pensamentos.

— Já trabalhou com auditoria contratual antes? — perguntou.

— Sim. Por pouco tempo. — Ela não especificou onde.

— Foi bom. Você notou algo que passou por todo mundo nesta sala.

Helena manteve o rosto calmo, mas por dentro sentiu uma chama inesperada de satisfação.

— Obrigada.

Arthur ergueu o queixo.

— A maioria demora semanas para entender nossos processos. Você entendeu em dois dias.

Ela não respondeu. Não precisava.

Ele pareceu avaliar esse silêncio antes de falar outra vez.

— Gosto de gente que observa mais do que fala.

Por um instante, Helena esqueceu que deveria odiá-lo. Só enxergou o homem que, mesmo com toda a frieza, parecia respeitar quem sabia manter o controle.

— Então vai gostar de mim — disse baixinho.

Arthur não sorriu. Mas por algum motivo, aquilo soou quase como uma promessa.

Ele passou por ela e saiu da sala sem dizer mais nada.

De volta à baia, Helena sentou-se devagar. As mãos estavam frias, mas não tremiam.

Sean apareceu na divisória e ergueu uma sobrancelha.

— E então? Sobreviveu?

— Sobrevivi.

— Já vi gente sair de lá chorando. — Ele soltou uma risada curta. — Arthur não costuma ser... gentil.

— Eu não preciso que ele seja.

Sean pareceu surpreso. Mas não insistiu. Apenas bateu de leve na divisória antes de se afastar.

Helena voltou ao computador. Na tela, dezenas de arquivos aguardavam. Mas antes de retomar, fechou os olhos por alguns segundos.

Ali estava ela: sentada no coração do império que destruiu seu pai. Sendo elogiada por quem, anos atrás, nem se deu ao trabalho de saber que existiam pessoas do outro lado das decisões.

Estou dentro, pensou outra vez. E você não faz ideia.

Perto das seis, quando a maioria já havia saído, Helena continuava na mesa, relendo relatórios. Sabia que Arthur também estava no andar. Via o vulto dele de vez em quando, passando de uma sala a outra, sempre com a postura ereta, sempre em movimento.

Era como observar um predador no próprio território. E por algum motivo, essa constatação não a assustava tanto quanto deveria.

Ela fechou o último documento e recolheu suas coisas com calma. Quando saiu, o corredor estava quase escuro. O elevador demorou a chegar, e no silêncio, Helena escutou passos firmes que se aproximavam.

Virou-se devagar.

Arthur parou a poucos metros dela. Não disse nada. Apenas a estudou como se houvesse algo a acrescentar — mas não era a hora.

— Boa noite, senhor Valente.

— Boa noite, Helena.

O modo como ele falou seu nome a fez sentir um arrepio. Como se, por um segundo, não fosse apenas um CEO e uma analista — mas duas pessoas reconhecendo que havia algo ali, embora nenhum dos dois pudesse nomear.

O elevador chegou. Helena entrou e pressionou o botão do térreo sem erguer mais os olhos.

Quando as portas se fecharam, o coração dela batia tão alto que parecia encher o espaço todo.

Na rua, o vento cortante bateu em cheio no rosto de Helena. Mas ela seguiu andando sem pressa, como se ainda estivesse dentro do prédio, como se Arthur ainda pudesse vê-la — reta, contida, invencível.

Só quando chegou à esquina e dobrou para uma rua mais silenciosa, permitiu-se parar.

O reflexo no vidro escuro de uma vitrine a fez encarar a própria imagem: impecável por fora, mas com os olhos mais vivos do que nos últimos anos.

Ele reparou em mim de novo.

Era perigoso. E era parte do plano. Mas também era outra coisa.

Porque pela primeira vez, o homem que ela viera destruir parecia vê-la. Não como mais uma funcionária. Mas como alguém que desafiava o controle que ele tanto prezava.

Helena seguiu a pé até o metrô. O vagão estava lotado, mas ela encontrou um canto e se apoiou contra o vidro.

A cabeça latejava. Não de cansaço, mas de adrenalina.

Tudo estava indo mais rápido do que esperava.

Arthur já confiava nela o suficiente para deixá-la em reuniões confidenciais. Os advogados tomavam nota de suas observações. Sean a respeitava. E, mais importante, ninguém ainda havia feito perguntas demais.

Mas aquilo não podia durar.

Quanto mais perto ela chegasse dele, mais arriscado seria.

Helena sabia que Arthur era obcecado por detalhes — e cedo ou tarde, começaria a procurar os dela.

Quando chegou ao flat, o quarto parecia ainda menor do que de costume. Largou a bolsa no chão e se sentou na cama com o corpo inteiro alerta.

Ligou o notebook velho e abriu um arquivo criptografado, onde mantinha anotações sobre a investigação. Não confiava em cadernos. Nem em agendas. Tudo ali era digital, protegido, rastreável só por ela.

Escreveu com rapidez:

Dia 3 – Sala 12B. Dossiê Technova. Erro proposital no termo francês. Vantagem fiscal indevida. Arthur aprovou revisão. Reação: interesse, não desconfiança.

Depois de salvar, apagou os rastros.

Deitou-se com os olhos presos no teto, o corpo inteiro tenso, como se esperasse algo explodir a qualquer momento.

Porque ela sabia que estava entrando no coração da fortaleza.

E o problema de entrar tão fundo…

…é que às vezes não se consegue mais sair.

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