Na manhã seguinte, Helena chegou antes de todos.
O corredor do Setor de Estratégia estava tão silencioso que parecia um lugar abandonado. Sentou-se à mesa com o coração firme no peito. Tudo estava acontecendo depressa demais — mas ela não tinha intenção de desacelerar.
Quando o relógio marcou oito em ponto, Sean entrou no setor e deixou um maço de pastas sobre a divisória dela.
— Novas revisões. — Ele passou a mão pelo cabelo, distraído. — Arthur quer parecer pronto antes do conselho na sexta.
— Algum problema específico?
— Não disse. — O tom de Sean ficou mais baixo. — Mas quer que você faça parte da apresentação preliminar amanhã.
Helena ergueu o rosto.
— Eu?
— Você está causando boa impressão. — Sean deu de ombros. — E Arthur é... particular. Se resolve simpatizar com alguém, vai até o fim. Se não simpatiza, bem... você viu como tratou o Daniel ontem.
Ela lembrava. O analista saíra quase chorando quando Arthur apontou a inconsistência do relatório.
— Entendi. — Ela manteve a voz neutra.
— Ele pediu que revisasse pessoalmente as notas fiscais da Technova e cruzasse com o contrato original em francês. — Sean respirou fundo, como se não concordasse com aquela escolha. — Vai ser um longo dia.
— Eu não me importo.
Ele assentiu, deixou a pasta sobre a mesa e saiu.
Helena apoiou os dedos sobre a capa de cartolina azul e sentiu um arrepio. Era a segunda vez que Arthur confiava algo tão sensível nas mãos dela. E cada nova tarefa fazia a distância entre eles diminuir de maneira perigosa.
Passou o dia inteiro conferindo datas, valores, assinaturas. Parou apenas para tomar água. Nem notou a hora passar até que, no meio da tarde, sentiu uma presença às suas costas.
Virou-se devagar.
Arthur estava parado, mãos nos bolsos do paletó escuro, olhando para a tela do monitor por cima do ombro dela.
— Alguma descoberta?
O coração de Helena disparou.
— Algumas datas não coincidem com os comprovantes originais. Pode ser um erro administrativo ou... — Ela ergueu o olhar. — Ou outra coisa.
— Outra coisa. — Arthur confirmou sem hesitar. — Esse fornecedor tem o hábito de maquiar datas de entrega. É a terceira vez que tentam.
Ela não sabia o que responder.
Ele se aproximou e pegou o mouse com calma, rolando o documento. O calor dele se espalhou no ar, e por um instante Helena esqueceu quem era.
— Isso. — Arthur apontou um valor. — Aqui está a divergência principal. O que sugere que façamos?
Ela engoliu em seco.
— Cancelar o contrato e abrir licitação com outro fornecedor.
Arthur sorriu de leve — mas não era simpatia. Era aprovação.
— Concordo. — Ele largou o mouse e se endireitou. — Prepare um parecer por escrito. Amanhã usaremos na reunião do conselho.
— Claro.
— E, Helena...
— Sim?
— Continue assim. — A voz dele baixou. — É raro encontrar alguém tão... preciso.
Ele saiu antes que ela pudesse responder.
Quando ficou sozinha, Helena apoiou a testa na mão. O corpo inteiro latejava como se tivesse corrido quilômetros.
Ele estava cada vez mais próximo. Cada vez mais atento.
E se aquilo continuasse, não sabia se conseguiria manter tudo apenas como estratégia.
À noite, de volta ao flat, ela não ligou a luz. Ficou sentada no escuro, respirando fundo.
Queria odiá-lo por ser tão competente, tão seguro de si, tão capaz de perceber qualquer detalhe.
Queria odiá-lo e pronto.
Mas havia algo na forma como Arthur a escutava que mexia com partes dela que pensava estarem mortas.
Você não pode sentir nada, pensou. Não pode confundir as coisas.
O celular vibrou. Mensagem da mãe. Seu pai perguntou por você. Está preocupado.
Helena digitou uma resposta curta: Está tudo bem. Preciso focar no trabalho.
E desligou o aparelho.
Fechou os olhos e visualizou o rosto dele com nitidez — os traços tensos, o olhar atento, a maneira contida de falar.
Ela não podia deixar que aquilo virasse algo mais.
Mas talvez já estivesse acontecendo.
Na manhã seguinte, chegou ao prédio com o coração mais acelerado do que gostaria de admitir.
A recepcionista sorriu com gentileza.
— Bom dia, senhorita Costa. O senhor Valente pediu que passasse direto à sala dele quando chegasse.
Helena manteve o semblante calmo, mas por dentro sentiu o estômago contrair.
— Obrigada.
O elevador parecia subir devagar demais. Cada andar fazia o suspense crescer.
Quando as portas se abriram no sétimo andar, ela respirou fundo e atravessou o corredor. Parou diante da porta de madeira escura e bateu duas vezes.
— Entre.
A voz dele era firme, próxima.
Helena entrou. Arthur estava sentado à mesa, o paletó pendurado no encosto da cadeira. À frente dele, um único documento impresso.
— Sente-se.
Ela obedeceu.
— Aqui está seu parecer? — perguntou, sem rodeios.
— Sim. — Helena passou a pasta. — Relatório detalhado, com datas e sugestões de encaminhamento.
Arthur pegou o papel e leu em silêncio. Cada linha parecia uma sentença.
Quando terminou, largou o documento com cuidado.
— Excelente. — Os olhos dele ergueram-se para ela. — Você tem noção de que este relatório pode economizar à empresa mais de quinhentos mil libras?
Helena controlou o susto.
— Faço o que tem que ser feito.
Por um instante, Arthur não disse nada. Só a encarou com aquela intensidade que tirava o ar.
— Não. — Ele baixou a voz. — Você faz mais do que isso.
O silêncio que se seguiu pareceu durar horas.
Helena sustentou o olhar, tentando não trair o que sentia. Mas era inútil. Porque naquele instante, alguma coisa se quebrou entre eles — uma barreira que não voltaria a existir.
Ela desviou o olhar primeiro, recolhendo o ar que parecia ter sumido dos pulmões. Precisava sair dali. Precisava lembrar por que estava fazendo tudo aquilo.
Mas Arthur não se moveu. Nem tentou disfarçar que a observava com o mesmo foco com que lia contratos.
— Amanhã, vamos apresentar esse material ao conselho. Quero que esteja presente.
— Claro. — A voz dela saiu rouca.
— E depois... — Ele hesitou, como se ponderasse se devia continuar. — Depois, pretendo propor seu nome para liderar uma nova célula de análise de risco.
Helena sentiu um peso no peito. Aquilo era muito mais do que esperava. Era quase um convite a permanecer.
— Isso não é necessário. — Tentou manter o tom neutro. — Estou aqui há poucos dias.
— Justamente por isso. — Arthur se inclinou sobre a mesa, os antebraços cruzados. — Preciso de pessoas que vejam o que ninguém vê. Você provou que consegue.
Ela não respondeu. Porque naquele momento, qualquer palavra soaria fraca demais para conter o que sentia.
Arthur soltou um suspiro breve. O primeiro gesto de cansaço que ela via nele.
— Sei que isso pode parecer... rápido. Mas não tenho paciência para desperdiçar talentos.
Eu não sou seu talento, pensou. Sou a ameaça que você não viu chegar.
Mas parte dela, uma parte que não conseguia calar, sentiu algo perigoso naquele reconhecimento. Uma fagulha que se acendia contra a própria vontade.
— Pense a respeito — disse ele, finalmente. — Me dê sua resposta depois da reunião.
Ela assentiu, se levantou e recolheu a pasta com cuidado. Quando virou de costas, ouviu a voz dele, baixa, sem aquela dureza costumeira.
— Helena.
Ela parou, mas não ousou se virar.
— Eu não erro sobre pessoas.
Por um instante, o mundo pareceu girar devagar demais.
— Veremos — respondeu, antes de sair da sala.
No corredor, encostou-se à parede, respirando com dificuldade. Precisava lembrar do pai, da dívida, do motivo pelo qual atravessara um oceano inteiro.
Mas cada vez que olhava para Arthur Valente, tudo ficava confuso.
Você não vai me quebrar, pensou, fechando os olhos. Mas talvez eu também não saia daqui intacta.