Na segunda-feira, Helena chegou ao prédio antes das oito. Não porque quisesse impressionar, mas porque precisava caminhar pelos corredores vazios antes que todos aparecessem — precisava sentir o território.
A recepção estava quase silenciosa, exceto pelo eco distante dos passos dos seguranças. Um cheiro sutil de café recém-passado se misturava ao perfume metálico dos elevadores.
Ela passou o crachá provisório no sensor, ouviu o bip de autorização e entrou. No sétimo andar, um corredor largo se estendia até a divisória de vidro que marcava a entrada do Setor de Estratégia Avançada.
Helena deixou os olhos percorrerem cada detalhe. As portas cinza-claras, as mesas alinhadas com perfeição, a luz fria que se espalhava pelo piso. Ali não havia espaço para descuido.
— Você deve ser a nova analista. — Uma voz masculina soou à esquerda.
Ela virou-se devagar e encontrou um homem mais jovem que Arthur, talvez trinta e poucos anos, terno impecável e um sorriso contido demais para ser sincero.
— Sou, sim. Helena Costa.
— Sean Chapman. Gerente deste setor. — Ele estendeu a mão, e ela apertou com firmeza. — Vai sentar ali. — Indicou uma baia de vidro que dava para o corredor interno. — Seu computador já está configurado. Senha temporária, depois você altera.
— Obrigada.
— Marcus me falou sobre sua experiência. — Sean inclinou a cabeça, curioso. — É raro encontrar alguém com fluência em três idiomas e histórico tão... diverso.
— Fui criada em Portugal, estudei na França, trabalhei em Lisboa. — O tom de Helena era neutro, quase educado demais.
— Impressionante. — O sorriso dele não mudava. — Aqui, gostamos de manter tudo registrado. Horários, tarefas, relatórios. Se precisar de algo, fale primeiro comigo.
— Claro.
Quando ele se afastou, Helena sentou-se diante do monitor. Inspirou fundo e começou a abrir os sistemas que treinara sozinha, nas madrugadas em que a ansiedade não a deixava dormir. Tudo ali era uma cartografia da empresa — um mapa de cada contrato, cada fusão, cada nome que passava pela mesa de Arthur Valente.
Ela percorreu as abas com atenção, lendo cada termo jurídico, cada cláusula de confidencialidade. Sentia-se como alguém que finalmente atravessara uma muralha alta demais para ser escalada.
No meio da manhã, recebeu a primeira tarefa oficial: revisar um dossiê de aquisição de uma empresa de tecnologia francesa. O documento tinha quase duzentas páginas. Helena abriu uma planilha paralela e começou a checar valores, contratos anteriores, inconsistências.
O tempo deixou de existir. Quando ergueu os olhos, já passava do meio-dia e Sean voltava com um copo de café na mão.
— Trabalhando sem pausa? — Ele ergueu a sobrancelha.
— Prefiro revisar tudo antes de almoçar.
— Arthur gosta de pessoas eficientes. — O tom dele não dizia se era um elogio ou um alerta. — Mas não esqueça de respirar, Helena.
Ela apenas assentiu. Quando ele se afastou, voltou ao documento. A mente fervilhava — não de medo, mas de uma excitação fria. Ali, nas entrelinhas de contratos milionários, estavam as fraquezas de Arthur Valente.
E ela só precisava encontrar a certa.
Perto das duas da tarde, levantou-se e foi até a copa envidraçada no fim do corredor. Encheu um copo de água e apoiou as mãos na bancada. Lá fora, o Tâmisa refletia um céu encoberto. Um barco passava devagar, carregado de contêineres.
— Você já comeu algo hoje?
Helena virou-se num sobressalto.
Arthur estava parado à porta da copa, sem anunciar a própria presença. Não usava paletó — só a camisa branca dobrada nos antebraços, como da outra vez. Mas agora ela reparou em detalhes que antes não percebera: a forma como os olhos dele não piscavam quando encaravam alguém, o vinco leve entre as sobrancelhas, o jeito calmo de falar, que parecia escolher cada palavra como se fosse um veredito.
— Senhor Valente. — Ela disfarçou o susto, endireitando os ombros. — Ainda não. Queria adiantar algumas análises antes.
— Vi seu progresso no sistema. — Ele se aproximou devagar. — Marcus estava certo. Você trabalha rápido.
— É o mínimo que espero de mim mesma.
Os olhos dele percorreram o rosto dela, sem pudor. Não era um olhar de interesse vulgar — era como se estivesse catalogando cada reação, cada centímetro de expressão.
— Por que deixou Lisboa? — perguntou, tão de repente que ela quase deixou cair o copo.
Helena segurou firme. A voz saiu baixa, contida:
— Razões pessoais.
— As melhores ou as piores?
Ela ergueu o queixo.
— Talvez um pouco das duas.
Por um instante, Arthur pareceu sopesar a resposta. Então inclinou a cabeça, satisfeito com o mistério que ela não revelava.
— Marcus comentou que você fala francês.
— Falo, sim.
— Ótimo. O projeto que está revisando envolve acordos com fornecedores de Marselha. Precisamos garantir que não haja cláusulas que compliquem a fusão.
— Estou conferindo linha por linha.
— Continue assim. — Ele fez menção de se virar, mas parou. — E, Helena...
— Sim?
— Não tente provar seu valor em um dia. — A voz dele baixou, quase confidencial. — Aqui, nada que se constrói rápido dura muito.
Ela sentiu um frio estranho correr pela coluna.
— Entendido.
Arthur saiu sem olhar para trás. Helena soltou o ar devagar e voltou a fitar o rio além do vidro.
Você não faz ideia, Arthur, pensou. Eu não vim aqui para construir nada. Vim para derrubar.
E talvez, nesse exato momento, tivesse começado.
Helena voltou à sua mesa com passos controlados, mas o corpo parecia carregar a eletricidade de um choque. Ainda ouvia a voz dele. Aquela última frase — "nada que se constrói rápido dura muito" — ecoava mais como aviso do que conselho.
Abriu novamente o dossiê da empresa francesa e forçou os olhos a focarem nas colunas de números e cláusulas jurídicas. Mas por dentro, estava longe dali.
Ele reparou em mim.
Era isso que a incomodava mais do que queria admitir. Não apenas por ter falado com ela, mas pela maneira como a olhou. Como se estivesse acostumado a ver além. Como se já tivesse identificado a rachadura.
A tarde avançou, e ela manteve a cabeça baixa, como uma boa peça no tabuleiro. O ritmo frenético do escritório a ajudava — vozes apressadas, notificações sonoras nos monitores, telefonemas curtos. Ninguém ali perdia tempo com gentilezas.
Por volta das cinco, Sean voltou à sua baia com um semblante mais relaxado.
— Estamos convocando uma reunião com o jurídico amanhã cedo. Arthur quer revisar esse material com você presente.
Helena piscou.
— Comigo?
— Ele costuma convidar novos analistas só depois de algumas semanas, mas... parece que você chamou atenção.
Ela escondeu qualquer reação.
— Claro. Que horas?
— Oito em ponto. Sala 12B. Não se atrase.
— Nunca me atraso.
Ele sorriu, mas não respondeu. Apenas seguiu para a própria sala.
Helena fechou o dossiê e, pela primeira vez no dia, permitiu-se encostar no encosto da cadeira. Reunião com Arthur Valente no segundo dia de trabalho. Era um movimento inesperado — e perigoso.
No metrô de volta para casa, as estações passavam diante dos olhos sem que ela notasse. A cidade toda parecia andar em alta velocidade, mas dentro dela, o tempo estava parado.
No flat, tirou os sapatos e se sentou no chão, costas apoiadas na parede. Pegou o contrato da pasta e ficou olhando para a assinatura dele no final da página: um traço firme, orgulhoso, seguro.
Você construiu um império sobre as ruínas dos outros, pensou. Mas agora alguém está dentro da sua muralha.
Amanhã, estaria sentada diante dele com advogados, revisando decisões que envolviam milhões. E ela prestaria atenção em tudo: nos nomes, nas empresas, nas intenções.
Porque às vezes, o poder se revela nos detalhes.
E era exatamente lá que ela pretendia atacar.