Mundo de ficçãoIniciar sessãoO despertador no posto de enfermagem marcava 4h22 quando o monitor do quarto 212 começou a apitar de forma irregular.
Beatriz abriu os olhos com dificuldade, levando a mão ao peito. O ar parecia preso. A dor, antes constante, agora vinha como uma onda violenta que tomava cada centímetro do corpo. — Dona Beatriz? — chamou Amália, aproximando-se rápido. — A senhora está sentindo algo? A paciente tentou falar, mas apenas lágrimas correram. O alarme disparou. — Doutor Angelo! — gritou Amália. O cardiologista entrou apressado, puxando o estetoscópio do pescoço. — Parada respiratória começando — murmurou, iniciando massagem torácica. Os minutos seguintes foram uma luta desesperada contra o inevitável. Choques, compressões, ventilação manual. Mas o corpo de Beatriz já estava cansado demais. Quando o monitor ficou em linha reta, o silêncio tomou o quarto. — Hora do óbito, 4h37 — disse o médico com a voz pesada. Amália levou a mão à boca. O peso da notícia que teria que carregar era maior do que ela imaginara. Naquela manhã cinzenta, a enfermeira organizou tudo: documentos, funeral simples no cemitério ao lado do hospital… sozinha. Ela segurou a mão de Beatriz pela última vez e sussurrou: — Eu prometo cuidar da Anna por você. --- Enquanto isso, a milhares de quilômetros dali, Anna caminhava nervosa para dentro de um pequeno prédio no México — fachada de escritório contábil, mas ela sabia exatamente o que funcionava ali. A porta rangeu quando abriu. O ambiente era gelado, iluminado demais, e tinha cheiro de desinfetante. Sentada atrás de uma mesa moderna, uma mulher de jaleco estampado com flores conversava com dois homens. Os cabelos castanho-escuros estavam presos em um coque impecável. Anna reconheceu pelo nome apenas: Dra. Seline Torres. A médica de fertilização que, segundo Pedro, também “resolvia as entregas mais delicadas”. Seline levantou o olhar assim que Anna entrou. — Ah, então você é a brasileira — disse ela com um sorriso calculado. — Pode vir. Já está tudo preparado. Anna se aproximou devagar. A dor no estômago ainda era intensa, mas o mais difícil tinha sido chegar até ali. Dois assistentes a conduziram para uma sala discreta, onde retirariam os pacotes que ela carregou por dias — um procedimento rápido, porém invasivo. Trinta minutos depois, Anna saiu apoiada na parede, exausta e pálida. Seline entregou um envelope pardo. — Aqui está a sua parte. Fez um bom trabalho. Anna segurou o envelope com dedos tremendo. Era o dinheiro que precisava. Era a vida da mãe. Era esperança. — Obrig… — Ela tentou falar, mas a voz falhou. — Se você precisar de atendimento médico, passe aqui amanhã — completou Seline, formal, já abrindo outra pasta. Anna apenas assentiu, passou pelo corredor estreito e empurrou a porta de saída. A luz do dia bateu forte em seus olhos quando ela chegou à calçada. A respiração estava acelerada. Ela precisava ouvir a mãe. Precisava avisar que estava tudo bem. Que o dinheiro tinha chegado. Que agora tudo ia melhorar. Encontrou um orelhão antigo na parede lateral do prédio, apoiou a mão no metal gelado e discou o número do hospital. — Hospital Geral de São Luís, bom dia. — Oi… quero falar com a minha mãe, Beatriz Santos — disse ela, trêmula. — Sou a filha dela. Anna. É urgente. A atendente hesitou. — Só um momento. Vou transferir para a diretora. Anna franziu a testa, confusa. Poucos segundos depois, a voz séria de Maria Sales surgiu. — Anna? É você? — Sim! Eu… consegui o dinheiro. Por favor, só quero falar com a minha mãe. Houve um silêncio longo. Longo demais. — Anna… — a voz da diretora quebrou — sua mãe faleceu. Já tem alguns dias. O chão desapareceu sob os pés da jovem. — Não… não… a senhora está confundindo… — murmurou ela, agarrando o telefone com força. — Ela ia aguentar até eu voltar… até eu conseguir… — Ela piorou muito rápido. A enfermeira Amália estava com ela. Ela cuidou de tudo… inclusive do enterro. Você deixou procuração, lembra? Anna desabou no chão da calçada. O telefone caiu, balançando no fio espiralado. O mundo ficou mudo, como se estivesse debaixo d’água. Só um som existia: o próprio coração quebrando. Chorou como se tudo dentro dela estivesse sendo arrancado — sua mãe, sua esperança, seu motivo para continuar. E não percebeu que, alguns metros atrás, Seline havia parado ao ouvi-la. A médica estava fechando a porta de vidro do escritório quando reconheceu pelo tom, pelo desespero, pela queda abrupta da voz: algo grave tinha acontecido. Curiosa. Observadora. E sempre pronta para aproveitar brechas. Aproximou-se devagar. — Anna…? — chamou com falsa delicadeza. — O que houve? A jovem mal conseguia respirar. — Minha mãe… — soluçou. — Ela… ela morreu… Seline se ajoelhou ao lado, colocando a mão em seu ombro. — Oh, querida… sinto tanto. Mas seus olhos avaliavam friamente cada reação. — Eu… eu não tenho mais ninguém — sussurrou Anna, perdida. — Não tenho por que voltar para o Brasil. Aquela frase caiu como ouro nos ouvidos de Seline. Ela inspirou devagar, calculando a próxima fala. — Anna, escute… — começou, oferecendo um lenço. — Eu trabalho em uma clínica em Nova York. Posso te ajudar. Você pode recomeçar lá. Ganhar dinheiro de verdade. Reconstruir sua vida. Ter um futuro. Anna levantou o rosto, sujo de lágrimas, encarando aquela mulher que parecia tão sincera naquele momento de dor. — Eu… eu realmente não tenho pra onde ir. — Então venha comigo — insistiu Seline, suave como veneno. — Eu te ajudo. E você não vai ficar sozinha nunca mais. O vazio dentro de Anna falou mais alto que a razão. Depois de alguns segundos, ela assentiu. — Tá… eu vou. Seline sorriu. Levantou, caminhou até o carro preto estacionado e pegou o celular. Digitou um número que conhecia bem. A ligação foi atendida quase imediatamente. — Chiara… — disse, baixinho, satisfeita — achei a barriga de aluguel perfeita.






