O relógio marcava 22h17.
James olhava para o celular apoiado na mesinha lateral como se fosse um inimigo antigo. A luz da tela piscava com notificações inofensivas: e-mails, lembretes, algo sobre uma reunião marcada para a segunda-feira. Nenhuma delas importava. Nenhuma era ela.
Passara o dia tentando agir como se Sophie não estivesse em sua cabeça — uma tentativa vã. Sentia-se como um homem grande demais para um quarto pequeno. A inquietação roçava em sua pele, nos pensamentos. Aquela sensação desconfortável de quem perdeu algo sem nunca realmente ter tido.
Ergueu o copo de cristal, encarando o uísque âmbar que balançava no fundo. Deu um gole demorado. O álcool desceu quente, mas não queimou o suficiente para apagar o que sentia.
Voltou o olhar para o celular. Pegou-o. Desbloqueou. Abriu a agenda, onde o número de Sophie estava salvo como se fosse um segredo de guerra. O polegar pairou sobre a tela. Bastava um toque.
Mas o medo não era dela. Era da resposta.
E se ela não atender?
E se insistir que realmente foi um erro?
E se me tratar como alguém que ultrapassou um limite?
James praguejou baixo. Largou o aparelho sobre o sofá, como se tivesse se queimado. Serviu mais um dedo de uísque. Outro gole. O silêncio do apartamento parecia zombar dele — grande demais, moderno demais, impessoal demais. E naquela noite, especialmente vazio.
Sentou-se, o cotovelo apoiado no joelho, o copo pendendo entre os dedos. A mente acelerada.
GFoi para a cama e tentou dormir. Deitou-se. Rolou de lado. Mudou de travesseiro. Fechou os olhos. Abriu de novo.
Sophie. Sempre ela.
Meia-noite passou. Meia-noite e meia.
Ergueu-se de novo e caminhou até a escrivaninha onde deixava o notebook. Talvez pesquisar algo sobre ela preenchesse a curiosidade que latejava desde que ela sumira no meio da chuva.
Digitou: "Sophie Lesser".
O mecanismo de busca girou por um instante, e então surgiram resultados diversos — a maioria irrelevante. Páginas de redes sociais, perfis desatualizados, nomes repetidos. Era como procurar uma agulha no palheiro.
Mas então, quase no fim da primeira página, encontrou algo.
Um artigo acadêmico: “Contradições na Empatia Urbana: invisibilidades no cotidiano das grandes cidades”, assinado por Sophie Lesser, Universidade de Columbia. Três anos atrás.
Clicou.
Leu cada parágrafo com atenção — e não apenas pela curiosidade. Havia verdade nas palavras dela. Clareza. Um tipo raro de lucidez apaixonada, que observava o mundo com olhos afiados e, ao mesmo tempo, profundamente humanos.
Sociologia. Fazia sentido.
Ela não era do tipo que se contentava com respostas fáceis. James sentiu isso desde a primeira troca de palavras. Havia algo incômodo e bonito nela: a forma como ouvia com profundidade e falava como se cada frase tivesse atravessado uma reflexão longa antes de ser dita.
Voltou à aba de buscas. Tentou as redes sociais. F******k, I*******m, LinkedIn. Centenas de "Sophie Lesser". Nenhuma com um rosto conhecido. Nenhuma pista. Nenhuma âncora.
Fechou o notebook com mais força do que deveria.
Levou a mão ao rosto, esfregando os olhos. Não sabia mais se estava obcecado ou apenas fascinado. Mas o fato era: Sophie deixara uma marca. E o pior... era que ele não sabia por quê.
Dormiu tarde, com o corpo ainda inquieto e a mente rodando. Sabia que no dia seguinte teria que vestir o papel que sempre usara com maestria: o filho mais velho, o executivo brilhante, o Carter equilibrado.
O jantar de noivado de Liam o aguardava. E ele teria que parecer inteiro. Mesmo que não estivesse nem perto disso.
James acordou tarde no domingo. O relógio já se aproximava do meio-dia quando ele abriu os olhos, a luz invadindo o quarto pelas frestas das cortinas. Estava com o corpo pesado e a mente ainda turva — não só pelo uísque da noite anterior, mas por tudo o que não dissera, por tudo que sentia e não sabia como lidar.
Alcançou o celular no criado-mudo, a tela acendendo de imediato. Dezesseis mensagens não lidas. Quase todas de Liam.
"Vai vir hoje, certo?"
"Não some justo hoje."
"Me avisa se vai mesmo, pra eu não mandar alguém te buscar."
"James?"
"Estou falando sério."
"Você prometeu."
James passou os olhos pelas mensagens, soltando um suspiro cansado. A vontade de responder era nula. A vontade de comparecer, menor ainda. Pensou em inventar algo — uma viagem de última hora, uma reunião emergencial com investidores em Londres, qualquer desculpa que o mantivesse longe daquilo. Mas nenhuma das opções parecia convincente. E, mais que isso, não queria que Liam percebesse seu desinteresse. Isso daria margem para discussões. E se havia algo que James não queria, era mais atritos com o irmão.
Confirmou presença no meio da tarde com uma mensagem breve:
"Estarei lá às 19h."
Depois disso, se trancou no escritório de casa e tentou resolver pendências atrasadas. Respondeu e-mails, conferiu contratos, revisou um relatório importante — tudo com a cabeça em outro lugar. Em alguém.
Sophie ainda estava presente como um eco difícil de calar. James já havia decidido que, depois do jantar, ligaria para ela. Precisava ouvir sua voz, entender por que ela fugira daquele jeito, por que o evitava como se o sentimento que tinham compartilhado debaixo da chuva fosse um erro. Talvez o noivado do irmão servisse de lembrete de que ele, James, também poderia tomar decisões ousadas. Inclusive com o coração.
Ao anoitecer, vestiu-se com calma. Escolheu um terno azul escuro, clássico, mas não formal demais. Um toque sutil de perfume e o cabelo impecavelmente penteado para trás. Quando olhou no espelho antes de sair, viu alguém que parecia no controle — mas apenas por fora.
A mansão da família Carter estava iluminada como em velhos tempos. Era o tipo de lugar que parecia conter histórias em cada parede — e algumas feridas também. A chegada de James não causou alarde, como sempre. Ele caminhou até o salão principal, onde seus pais recebiam os convidados com simpatia discreta.
— James! — exclamou a mãe, ao vê-lo. — Pensei que fosse nos deixar esperando até o último minuto.
Ele a abraçou com ternura.
— Tive um dia cheio — respondeu, sem mencionar que estivera apenas tentando não pensar em alguém.
O pai o cumprimentou com um aperto de mão firme, e os dois se afastaram um pouco para conversar sobre os negócios.
— A expansão no Oriente foi bem-sucedida, então? — perguntou o Sr. Carter, interessado.
— Acima das expectativas, pai. — disse James, com um leve aceno de cabeça. — Temos um novo investidor de Singapura. Vou marcar uma reunião com o senhor e o conselho na próxima semana. Acho que vale a pena considerar uma entrada mais agressiva por lá.
— Gosto disso. — O pai sorriu, satisfeito. — É bom tê-lo de volta.
Já a mãe, sempre com a doçura disfarçada de curiosidade, não tardou a comentar:
— E você, James? Quando vai nos dar um motivo para organizar outro jantar assim? Quem sabe o seu noivado?
James soltou uma risada leve, mais um desvio do que uma resposta.
— Talvez mais cedo do que imagina — disse, quase sem pensar. E imediatamente, a imagem de Sophie lhe veio à mente.
A mãe arqueou as sobrancelhas, divertida.
— Espero que ela seja alguém especial. A noiva do Liam... bom, é uma garota encantadora. Fiquei aliviada. Só espero que ele não cometa os mesmos erros do passado.
James franziu a testa, lembrando das histórias turbulentas do irmão. Relacionamentos curtos, polêmicas estampadas em colunas sociais, uma ex-noiva abandonada no altar enquanto Liam era flagrado num motel de luxo com duas modelos.
— E você acha que ele aprendeu? — perguntou, cético.
— Acredito que sim — respondeu a mãe, esperançosa. — Com essa garota, ele parece... diferente.
James bebericava uma taça de vinho quando ouviu um leve alvoroço na entrada. As vozes baixaram, olhares se voltaram para o hall. Liam havia chegado. E não estava sozinho.
James girou o rosto lentamente, ainda com a taça na mão. E, então, viu.
Sophie.
A respiração lhe falhou por um instante. A mente demorou segundos longos para aceitar o que os olhos já tinham registrado. Ela estava ali, ao lado de Liam. Vestido azul-marinho, cabelo solto em ondas suaves, os olhos — aqueles mesmos olhos — tentando parecer serenos. Mas estavam tensos. Nervosos. Fixos em qualquer lugar que não fosse ele.
O mundo ao redor pareceu emudecer.
James permaneceu imóvel, paralisado por uma mistura de choque e incredulidade. O coração batia com força no peito. Sophie. A mulher que ele não conseguia tirar da cabeça. A mesma que beijara na chuva. A que prometera não vê-lo mais. Agora, diante dele, como noiva de seu irmão.
Ela também o viu. Claro que viu. Por um segundo, seus olhares se cruzaram. Havia algo nos olhos dela — uma surpresa contida, como quem já esperava a dor, mas não sabia que seria tão intensa.
Sophie não demonstrou nada. Fingiu. Como uma atriz experiente, estendeu a mão quando foi apresentada.
— Sophie Lesser — disse, com um sorriso que parecia ter sido esculpido à força.
James segurou a mão dela, por instinto. Mas não respondeu de imediato. A voz parecia presa em algum lugar dentro dele.
Liam, sem perceber o abismo entre os dois, riu.
— James, esse silêncio é raro. Aposto que não esperava ver alguém tão linda assim ao meu lado, não é?
James soltou uma risada breve. Forçada.
— De fato. Você... se superou. Parabéns.
Sophie manteve o sorriso, mas havia um leve tremor em sua expressão. James sentiu. E também soube, ali mesmo, que nada do que sentira nos últimos dias havia sido em vão.
Ela também sentia. Mas agora... era tarde demais.