Nova York parecia mais lenta naquela noite. As luzes ardiam sob um céu carregado, e o ar tinha aquele peso úmido que anunciava chuva antes que a primeira gota caísse. James saíra de uma reunião de última hora que tinha se estendido mais do que o necessário. A cabeça cheia, o humor opaco. Precisava caminhar.
Entrou numa livraria pequena que costumava frequentar quando queria esquecer o mundo. Raramente encontrava alguém que conhecesse ali — era uma dessas esquinas secretas da cidade, que pareciam não existir nos mapas.
Estava passando os dedos pelas lombadas, distraído, quando ouviu uma voz atrás dele. Suave, levemente irônica.
— Não imaginava que você fosse do tipo que lê poesia.
James virou-se e a viu. Sophie.
Ela usava um vestido escuro, simples, o cabelo preso num coque desalinhado. Tinha nas mãos um exemplar de Rilke, o olhar curioso, como se o acaso fosse, mais uma vez, uma peça bem planejada do destino.
— Eu não sou — respondeu ele, com um meio sorriso. — Mas às vezes me deixo enganar pela capa.
— A poesia costuma fazer isso. Promete leveza e entrega fardo.
James a observou por um instante, deixando o silêncio entre eles se estender. Não era incômodo — era carregado de algo que ambos fingiam não perceber.
— Está indo para algum lugar? — perguntou ele, quase como um convite sem forma.
— Estava só matando tempo. Esperando a chuva passar. Mas, aparentemente, ela decidiu ficar.
Lá fora, a garoa fina começava a engrossar. O som das gotas contra o toldo era hipnótico.
— Quer caminhar um pouco? — ele disse. — Posso te acompanhar até onde der. Ou até onde quiser.
Sophie hesitou por meio segundo. Depois, assentiu.
Saíram lado a lado, sem guarda-chuva, como se isso não importasse. A chuva escorria devagar, molhando os cabelos, os ombros, os passos.
Caminharam sem rumo. Falaram de memórias soltas — uma viagem de infância, um cheiro que lembrava casa, uma música que teima em doer. Sophie contava as coisas como quem entrega aos poucos, com cuidado. James escutava como quem não queria perder nada.
Em dado momento, pararam diante de uma praça vazia. As luzes refletiam nas poças, e o som da cidade parecia distante demais.
— Você me intriga, Sophie — disse ele, com a voz mais baixa do que de costume.
— Isso é bom ou ruim?
— Isso é raro.
Ela o olhou. Os olhos grandes, intensos. E então, como se não houvesse mais para onde adiar, ele se aproximou. Lentamente. Tocou o rosto dela com a ponta dos dedos, como se testasse a realidade.
Ela não recuou.
O beijo aconteceu como se já estivesse acontecendo há muito tempo, apenas à espera do momento certo. Foi calmo no início, depois urgente. A chuva descia mais forte agora, mas parecia não tocá-los.
E, por um instante, nada existia fora daquele toque.
Mas então Sophie se afastou. De súbito.
— Não — disse, com a respiração entrecortada. — Isso não pode acontecer.
— Por quê? — James sussurrou, confuso.
Ela balançou a cabeça, deu um passo atrás.
— Eu não posso... me permitir isso. Não com você. Não agora.
Ele tentou se aproximar de novo, mas ela levantou a mão, pedindo espaço.
— Não me procure, James. Por favor.
— Sophie...
— Foi um erro. Bonito, mas um erro.
E antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, ela se virou e foi embora. Deixou-o ali, parado, molhado, com o gosto dela ainda nos lábios e o coração latejando num ritmo que ele não reconhecia.
James ficou imóvel por alguns segundos, sem entender o que doía mais: a perda abrupta de algo que mal tinha começado, ou a certeza de que não conseguiria deixá-la ir tão fácil assim. Porque Sophie não era só uma mulher bonita ou interessante. Ela era uma fenda em tudo que ele tinha construído com tanto controle. E, estranhamente, ele queria atravessar aquela fenda — mesmo sem saber o que havia do outro lado.
O sábado chegou com um céu claro demais para o humor de James. Tentou mergulhar nos relatórios acumulados, nos e-mails atrasados, nos números que normalmente lhe serviam de abrigo — mas nada surtia efeito. A imagem de Sophie, com os olhos marejados pela chuva e a voz trêmula ao dizer que não podiam se ver mais, insistia em reaparecer. Como se tivesse deixado algo incompleto nele. Uma frase suspensa.
Fez o possível para ignorar. Foi à academia, saiu para almoçar com um velho conhecido de negócios, leu metade de um capítulo de um livro técnico sobre fusões e aquisições e, ainda assim, tudo o que conseguia pensar era:
Por que ela foi embora daquele jeito?
Por que pareceu tão certa de que aquilo era um erro… quando parecia tudo menos isso?
Havia também o jantar de noivado de Liam no domingo — mais uma razão para tentar manter os pés no chão. Não queria chegar à casa da família com o rosto marcado por insônia e os olhos perdidos no vazio. Ele era James Carter, afinal. O filho mais velho, o nome por trás da expansão do império. Objetividade era seu terreno. Emoções não costumavam ditar sua agenda.
Mas naquela tarde, ele cedeu. Saiu de casa com destino nenhum, como se seus passos soubessem o que ele ainda não admitia. Caminhou até a cafeteria da primeira vez. Nenhum sinal dela. Depois foi à livraria. De novo, só o vazio das prateleiras e o som abafado do ar-condicionado.
Frustrado, olhou em volta, quase pronto para sair. Mas então, parou. Havia uma ideia. Tênue, talvez tola. Mas uma ideia.
Aproximou-se do balcão onde um rapaz de óculos redondos lia algo num tablet, completamente alheio ao mundo.
— Com licença — disse James, com a voz mais firme do que se sentia.
O atendente olhou, surpreso. Endireitou os ombros.
— Posso ajudar?
— É um pouco incomum, mas... estou tentando encontrar uma pessoa. Acho que ela é cliente de vocês. Frequentadora, talvez. — James pausou, escolhendo bem as palavras. — Ela me ajudou com um presente para a minha sobrinha, e eu prometi que mandaria notícias. Acabou que perdi o contato, e... bom, achei que poderia tentar por aqui.
O atendente o olhou por um instante, ponderando. James não era exatamente alguém que passava despercebido — alto, imponente, com um blazer casual que valia mais do que o aluguel de muitos por ali.
— O nome dela? — perguntou o rapaz, já puxando uma pequena caixa de cartões.
— Sophie. Eu... não sei o sobrenome. Cabelos loiros escuros, ondulados, olhos azuis. Bem falante. Inteligente.
O atendente sorriu, como quem reconhece a descrição.
— Deve ser a Sophie Lesser. Ela vive aqui, praticamente. Tem assinatura conosco há anos. De vez em quando, vem com a mãe.
Vasculhou os cartões até parar num que segurou com cuidado.
— Aqui. Sophie Lesser. — Olhou para James, hesitante por um instante. — Você disse que precisava mandar notícias?
James assentiu. Não mentiria mais que isso.
— Se puder me passar o telefone, eu agradeço. Juro que não vou usar de forma indevida.
O rapaz pegou um bloquinho, anotou os números com uma caneta de ponta fina e entregou a James.
— Ela mora aqui por perto, com a mãe. Uma mulher discreta, simpática. Acho que a mãe se chama Lauren... Algo assim.
James pegou o papel como quem segura uma chave rara. Guardou com cuidado no bolso interno do casaco.
— Obrigado. De verdade.
Como forma de agradecimento, voltou às prateleiras, escolheu dois volumes de edições raras — Faulkner e Tolstói — e os levou ao caixa sem pestanejar.
— Pode embrulhar. Um presente para mim mesmo — disse, oferecendo um sorriso breve.
Ao sair da livraria, sentiu uma brisa mais fria varrer a calçada. O sol começava a ceder, tingindo o céu de um azul cinzento.
Parou numa esquina, pegou o celular. Digitou o número de Sophie. Parou. Apagou. Tornou a digitar. Parou de novo.
O que vou dizer?
Que fui atrás do número dela numa livraria porque não consegui parar de pensar no beijo? Que fiquei rodando Manhattan tentando vê-la de novo?
Guardou o celular no bolso.
Precisava encontrar as palavras certas — e, principalmente, entender o que, de fato, estava acontecendo dentro dele.
Mas uma coisa era certa: não conseguiria seguir adiante fingindo que Sophie Lesser fora apenas um encontro casual debaixo da chuva. Porque não era. E, no fundo, ele sabia que ela também sentira.