O cheiro de madeira queimada e ervas amargas enchia a tenda de Helena. As chamas da lareira lançavam sombras dançantes nas paredes de couro, tornando o ambiente ainda mais opressor. Lysandra permanecia de pĂ© no centro, o rosto erguido, embora o sangue ainda pulsasse forte em suas tĂȘmporas.
Helena a fitava com olhos de pedra.
â Onde esteve? â a alfa perguntou, a voz baixa e cortante.
Lysandra apertou os punhos.
â Na floresta.
â Sozinha?
â Sim.
Helena se aproximou, a capa de peles arrastando-se pelo chĂŁo.
â VocĂȘ Ă© a filha da alfa, Lysandra. A prometida de Viktor. NĂŁo pode agir como uma loba sem matilha, correndo pelas sombras feito uma selvagem.
â E se Ă© exatamente isso que eu sou? â rebateu, o tom carregado de amargura.
O tapa veio rĂĄpido, mas nĂŁo violento. Mais uma marca simbĂłlica do que punição. Helena era assim â as palavras dela feriam mais do que as mĂŁos.
â VocĂȘ carrega a responsabilidade de todos nĂłs. Essa aliança nĂŁo Ă© apenas sua. Ă o sangue da nossa matilha, a segurança do nosso povo. Se continuar se rebelando, vai condenar a todos.
Lysandra respirou fundo, mas nĂŁo respondeu.
Dentro dela a lembrança muda de seus olhos dourados â rugia, clamando por liberdade.
Helena deu um passo para trĂĄs.
â Viktor veio me procurar esta manhĂŁ. Disse que a encontrou na floresta, com um lobo selvagem.
Lysandra sentiu o estĂŽmago se revirar.
â Era sĂł um animal.
A alfa estreitou os olhos.
â Nenhum animal vaga por Eldren sem que saibamos. E nenhum lobo comum desafia um alfa. Lembre-se, menina⊠nem tudo o que carrega presas Ă© besta. HĂĄ coisas antigas nesta floresta.
Ela sabia. No fundo, sabia.
Helena apontou para a saĂda.
â Na prĂłxima lua cheia, serĂĄ feita sua cerimĂŽnia de uniĂŁo com Viktor. NĂŁo haverĂĄ mais passeios noturnos. Nem encontros com sombras.
Lysandra deixou a tenda, o peito sufocado.
A aldeia estava em silĂȘncio, os lobos recolhidos, as tochas iluminando o caminho de terra batida. Ela caminhou atĂ© os limites da floresta, onde as ĂĄrvores velavam os segredos de Eldren.
Foi quando ele surgiu.
A sombra familiar, os olhos dourados brilhando na penumbra. Como se a esperasse, como se sentisse sua angĂșstia.
Lysandra avançou sem pensar.
O lobo se aproximou, a cabeça baixa, o olhar quente.
Ela ajoelhou, os dedos enroscando-se na pelagem dele.
â Eles querem me prender. Querem que eu me curve, que me entregue a alguĂ©m que nĂŁo amo. Mas quando estou aqui, com vocĂȘ⊠eu esqueço de tudo isso.
O lobo a fitou, e por um breve instante, Lysandra jurou ver algo humano naquela expressão. Algo antigo, ferido e⊠apaixonado.
A floresta sussurrava ao redor, e Lysandra soube que, mesmo que quisesse, não conseguiria mais se afastar. Aquela ligação era mais forte do que ordens, pactos ou promessas.
Era destino.
Porém, entre as årvores, um vulto observava.
Viktor.
Seus olhos frios acompanhavam a cena, a mandĂbula cerrada. Ele nĂŁo era um tolo. Reconhecia quando um elo se formava, quando o desejo plantava raĂzes no coração de alguĂ©m. E nĂŁo permitiria que a loba destinada a ele fosse tomada por uma fera maldita.
Um leve sorriso curvou seus lĂĄbios.
â EntĂŁo Ă© isso â murmurou para si. â Que venha a lua cheia⊠e veremos quem sobrevive.
Ele se virou, desaparecendo na escuridão, mas a guerra havia começado.
E a lua, lĂĄ no alto, brilhava mais intensa, sedenta por sangue.