O crepĂșsculo tingia o cĂ©u de tons avermelhados enquanto a aldeia da Lua Vermelha se preparava para a cerimĂŽnia. O som abafado de tambores e risos preenchia o ar, misturado ao aroma de ervas queimadas e madeira estalando nas fogueiras. No centro da aldeia, as tendas estavam adornadas com peles e sĂmbolos ancestrais, relĂquias de geraçÔes que mantinham viva a força e a unidade da matilha.
Lysandra caminhava entre as sombras, seus passos leves quase sem som sobre a terra coberta de folhas secas. A capa vermelha que usava se agitava com a brisa morna, contrastando com a penumbra crescente. As vozes familiares, os olhares de orgulho e expectativa, tudo parecia distante, como se ela estivesse atravessando um mundo paralelo. A garota sentia um peso invisĂvel pressionar seu peito â a responsabilidade, o destino, o nome que carregava.
â Lysandra, minha filha â a voz firme e autoritĂĄria de Helena soou atrĂĄs dela, fazendo-a parar. â Hoje vocĂȘ serĂĄ prometida a Viktor. Ă hora de cumprir seu dever.
Lysandra se virou lentamente, encontrando os olhos da mĂŁe, tĂŁo penetrantes e frios quanto o aço. Helena, a alfa da matilha, carregava o peso de geraçÔes, um poder que se manifestava em cada gesto e palavra. Ela nĂŁo tolerava desobediĂȘncia.
â Eu sei, mĂŁe â respondeu Lysandra, a voz baixa, quase um sussurro. â Mas nĂŁo sei se estou pronta para ser o que esperam de mim.
Helena deu um passo Ă frente, o olhar implacĂĄvel.
â NĂŁo se trata do que vocĂȘ quer. Ă o que devemos fazer para garantir a paz entre as matilhas. Viktor nĂŁo Ă© apenas um homem â ele Ă© o futuro da nossa aliança. VocĂȘ deve aprender a honrar isso.
Lysandra abaixou o olhar, a garganta apertada. Ela odiava Viktor. Desde que o conhecera, sentira uma presença sufocante, como se ele fosse um predador que a vigiava a cada movimento. O sorriso dele era frio, e os olhos, cinzentos e cruéis, jamais mostravam ternura.
Ela sentia que o casamento seria uma prisĂŁo, um contrato sem amor que selaria seu destino e o da Lua Vermelha.
Quando a noite finalmente caiu, os tambores cessaram e as tochas foram acesas, iluminando o espaço central onde a cerimĂŽnia aconteceria. O povo da aldeia reuniu-se, silenciando-se ao ver Lysandra entrar, trajando uma tĂșnica vermelha bordada com sĂmbolos antigos.
Os olhares se fixaram nela â alguns cheios de esperança, outros de desconfiança.
Mas Lysandra sĂł pensava em fugir.
Assim que pÎde, afastou-se da clareira, ignorando os sussurros e os olhares. Seu coração batia acelerado enquanto corria em direção à floresta que circundava a aldeia.
As ĂĄrvores erguiam-se como sentinelas silenciosas, seus galhos entrelaçados formando tĂșneis escuros e Ășmidos. O cheiro da terra molhada e das folhas frescas envolvia Lysandra, trazendo uma sensação de liberdade que hĂĄ muito nĂŁo sentia.
Ela caminhava devagar, absorvendo cada som da floresta â o farfalhar das folhas, o canto distante de um pĂĄssaro noturno, o murmĂșrio do vento. Era como se a natureza lhe sussurrasse segredos esquecidos, e seu corpo inteiro se animasse com aquela presença.
De repente, um som chamou sua atenção. Um movimento entre as årvores, algo grande e silencioso.
Lysandra congelou, o peito subindo e descendo em respiraçÔes curtas.
EntĂŁo, surgiu a criatura.
Um lobo imenso, pelagem acinzentada, olhos dourados que brilhavam intensamente na penumbra da floresta. Ele a observava, parado entre as sombras, imĂłvel e sereno.
Ela sentiu o medo se misturar a uma estranha sensação de calma.
Sem pensar, estendeu a mão na direção dele. A fera não recuou.
Seus dedos tocaram a pelagem ĂĄspera e quente, e um arrepio percorreu sua pele.
Lysandra jamais havia sentido algo tĂŁo intenso â como se aquele contato despertasse algo dentro dela, uma conexĂŁo profunda e misteriosa.
O lobo inclinou a cabeça e a observou com olhos que pareciam ler sua alma.
â VocĂȘ nĂŁo Ă© como os outros â murmurou ela, quase sem voz.
O silĂȘncio da floresta se tornou absoluto, e a lua cheia surgia por entre as ĂĄrvores, iluminando a cena com sua luz prateada.
Lysandra sentou-se na relva, o coração pulsando forte.
â Eu deveria estar em casa, preparada para a cerimĂŽnia. Mas aqui⊠aqui sou eu mesma.
A criatura ficou ao seu lado, como um guardiĂŁo silencioso.
Mas entĂŁo, o som de passos firmes rompeu o silĂȘncio.
Lysandra se levantou num salto.
Entre as ĂĄrvores, uma figura surgiu â Viktor.
Ele caminhava com a confiança de um alfa, olhos frios e implacåveis fixos nela.
O cheiro de fumaça e sangue fresco impregnava suas roupas, um lembrete ameaçador do poder que exercia.
â Interessante â disse ele, a voz baixa e ameaçadora. â A prometida da Lua Vermelha⊠sozinha na floresta. Com um lobo selvagem.
O lobo rosnou baixo, os olhos fixos em Viktor.
Lysandra sentiu o corpo tenso, dividida entre o medo e a coragem.
â Eu estava caçando â respondeu, tentando manter a voz firme.
Viktor deu um passo adiante, o sorriso de predador se alargando.
â Cuidado, Lysandra. Nem todos os lobos desta floresta sĂŁo inofensivos.
Sem esperar resposta, ele se afastou, desaparecendo na escuridĂŁo entre as ĂĄrvores.
Lysandra ficou ali, o coração acelerado, olhando para a criatura que ainda a observava.
â Eu preciso ir â sussurrou â mas voltarei.
O lobo apenas a encarou, e naquele olhar havia uma promessa silenciosa.
Ela virou-se e desapareceu entre as sombras da floresta, enquanto a lua cheia brilhava alto, testemunha muda do inĂcio de um destino entrelaçado.