Em um reino onde a magia foi silenciada e a memória da antiga soberana apagada por uma maldição secular, Evelin — a única que ainda lembra — guarda o último fio da verdade. Quando Eros, um mensageiro mascarado e herdeiro oculto do trono, entra em Thariel com ordens da Névoa, seus sonhos começam a sangrar com fragmentos de um passado proibido. Ela carrega a centelha da rebelião. Ele, os dons que podem reacender o mundo. Juntos, eles são o começo da Quinta Centelha — o despertar daquilo que jamais deveria voltar. Mas o esquecimento é uma prisão bem guardada… E os que lembram demais, não costumam viver por muito tempo.
Ler maisO céu amanheceu em silêncio.
Não era o silêncio dos dias normais, quando os pássaros dormiam até mais tarde ou quando a névoa cobria as montanhas como véu. Era um silêncio estranho, espesso. Do tipo que faz os cabelos da nuca arrepiarem e o estômago embrulhar sem motivo. Evelin acordou com ele.
— Vovó? — chamou, a voz ainda rouca do sono. Nada.
A pequena casa de pedra estava estranhamente fria, apesar de o fogo ainda brilhar na lareira. Ela calçou as botas gastas e saiu para o campo. O vilarejo estava inteiro parado. Homens de cabeça baixa, mulheres ajoelhadas, olhos vidrados. Ninguém falava. Ninguém chorava. Apenas... olhavam.
Lá, no alto da colina onde as decisões do reino eram tomadas, estavam os soldados. Homens em armaduras negras, com o brasão vermelho recém-criado estampado nos peitos. O antigo símbolo da governante — uma árvore dourada com raízes longas — havia sido arrancado, queimado, esquecido.
Menos por ela.
Evelin viu quando Vermon apareceu. Alto, imponente, a capa roxa esvoaçante. Seu rosto carregava cicatrizes fundas e um sorriso de vitória. Atrás dele, o corpo da governante anterior jazia no chão. Os cabelos loiros ainda reluziam sob o sol pálido. Os olhos, abertos, vazios.
Ela tentou correr para lá, mas uma mão forte a agarrou. Seu pai. Os olhos dele estavam vazios também. O mesmo olhar que todos tinham naquele instante.
— Pai! É a rainha! Ele... ele matou ela! — gritou Evelin, esperneando, se debatendo como uma fera ferida.
— Evelin... quem é você? — ele murmurou, os olhos escurecendo.
O mundo girou.
As palavras de Vermon começaram como um sussurro, mas tomaram o ar como um trovão contido. Ele erguia os braços, e da palma de suas mãos um pó dourado esvaía, serpenteando pelo ar, envolvendo todos ao redor como um véu invisível.
— A nova era começa agora. Esqueçam os erros. Esqueçam o passado. Lembrem apenas do meu nome — Vermon. Aquele que vos libertou.
E foi quando Evelin caiu de joelhos.
Ela sentiu o feitiço tentando atingi-la. Um zunido nos ouvidos, uma dor aguda na cabeça, uma tontura repentina. Mas não funcionou. Algo dentro dela — quente, pulsante, antigo — a protegeu. Seus olhos brilharam por um instante, como se refletissem fogo. Ela viu. Lembrou. Sentiu.
E percebeu que era a única.
As pessoas ao redor começaram a sorrir. A bajular Vermon. A agradecer. Como se tivessem sido salvas. Como se aquela manhã não tivesse sido o fim... mas o início de algo bom.
Ela correu. Para a floresta. Para longe.
E naquele dia, Evelin jurou que nunca esqueceria.
**
Ela faria de tudo para não esquecer, mas algumas coisas são melhores quando estão escondidas.
Outros iriam se lembrar, outros fariam questão de esquecer, mas acima de tudo a terra, a floresta, o vento uivante, esses...ahhh esses jamais esquecerão.No momento certo os sussurros seriam espalhados, o vento faria questão de ajudar.
A terra iria mostrar seus tesouros escondidos.
A floresta iria abrigar e ajudar aqueles que buscavam a verdade.
Era só uma questão de tempo...
O portal se fechou atrás de Vermon com um estalo agudo, como ossos se partindo. O vento da Colina de Varnak soprou mais forte, trazendo o cheiro ácido de tempestade, de sangue, de magia antiga e proibida.Vermon ficou alguns segundos parado, os olhos fixos na lâmina em suas mãos. Akharon. A Lâmina do Vazio.Ela não era feita para existir neste mundo. O próprio ar tremia ao redor da arma, e onde a luz deveria refletir, só havia a distorção da realidade. As bordas da lâmina tremeluziam, quase líquidas, quase sólidas. E no centro, o núcleo vermelho pulsava... como um coração que batia não em carne, mas em fome.Cada passo que dava até o trono deixava marcas no chão — fissuras negras, queimadas que se espalhavam como raízes apodrecidas.Ao cruzar os portões do salão, as sombras recuaram. Até as serpentes entalhadas no braço do trono pareciam querer se esconder, curvar-se, como se reconhecessem aquilo... e temessem.Thenos já o aguardava. Mas não como sempre. Algo nele havia quebrado desde
O vazio engoliu Vermon. Atravessar o portal não era como cruzar uma porta. Era ser arrancado da própria existência, ter os ossos esticados, as memórias dobradas, os sentidos desmontados e remontados sob uma lógica que não era deste mundo.Por alguns segundos — ou foram horas? dias? — não existiu chão, nem céu, nem corpo. Apenas um grito sem som atravessando a eternidade. Até que, com um estalo que reverberou na própria alma, seus pés tocaram algo sólido.O cheiro veio primeiro. Não era apenas podridão. Era o cheiro de coisas que nunca deveriam ter existido, de carne que nunca foi viva, de ossos que jamais pertenceram a qualquer criatura. Era cheiro de passado corroído e futuro abortado.Diante dele, erguia-se a Cidadela das Sombras.Um colosso flutuando sobre o nada. Torres retorcidas, espirais de ossos, plataformas suspensas por correntes negras que não se prendiam a lugar algum. As paredes eram feitas de pedra, carne e metal — fundidos, como se o próprio tecido da realidade tivesse
O salão respirava sombras. Tecidos escuros se derramavam das colunas como véus vivos, serpenteando lentamente, impulsionados por uma energia que parecia pulsar de dentro das próprias paredes. No centro, um espelho de obsidiana refletia imagens distorcidas, retorcidas, como se fragmentos do mundo estivessem sendo dilacerados e costurados novamente por mãos invisíveis.Diante dele, Vermon mantinha as mãos estendidas, os dedos crispados, a mandíbula tensionada. As imagens à sua frente não deixavam dúvidas. As rachaduras no véu da maldição se alastravam como veias douradas, correndo por locais onde, até então, a própria realidade parecia intocável. Algo — não, muitos — já estavam fora do controle. O equilíbrio que ele sustentara por séculos desmoronava mais rápido do que qualquer previsão permitira.Um som suave ecoou, a madeira rangendo com o abrir de uma porta. Thenos adentrou, as passadas firmes, mas seu rosto carregava um traço raro, quase imperceptível: hesitação.— Os Sombrios foram
O grupo avançou mata adentro, deixando para trás a clareira do encontro. As folhas úmidas rangiam sob as botas, galhos quebravam, e o silêncio que os envolvia não era desconfortável, mas atento — como se a própria floresta os observasse.Cada um parecia saber exatamente o que fazer. Não foi necessário que Cael desse ordens — eles já haviam feito isso vezes o bastante para que tudo fluísse naturalmente.— Torren, Branik, vocês cuidam da lenha. — disse Cael, olhando por sobre o ombro. — Silas, vê se acha algo pra comer. Se der, caça leve. Selene, dá uma volta no perímetro, garante que não estamos sendo seguidos. Darian, ajuda Liora com a montagem do abrigo.Eros arqueou uma sobrancelha, murmurando para Evelin:— Organizados, esses daí.Evelin apenas sorriu de canto. — Dá pra perceber.Cael olhou para eles. — Se quiserem ajudar... — apontou para um lado — Galhos secos sempre são bem-vindos.Pouco depois, a pequena clareira improvisada começou a tomar forma. Uma fogueira se acendeu no cen
O cheiro úmido de folhas esmagadas, musgo e terra preenchia o ar. A luz que filtrava pelas copas das árvores criava feixes dourados que dançavam entre a névoa tênue, enquanto as folhas balançavam, lançando sombras em movimento sobre o chão irregular do bosque.Evelin manteve o olhar fixo nos rostos que surgiam da penumbra, os mesmos que tentaram atacá-los. Seus sentidos estavam em alerta, mas seu coração não batia com medo — não deles."Eu já sabia que havia alguém por perto... há dias. Senti suas presenças. Não são como os outros... não são como os Sombrios nem como os agentes do rei. São diferentes... não há maldade neles." — pensou, enquanto apertava inconscientemente o pingente em seu pescoço.Ao seu lado, Eros se colocou meio passo à frente, a mão discretamente deslizando para perto da adaga oculta na cintura. Seus olhos percorreram cada rosto à frente, e embora sentisse a mesma perturbação mágica que Evelin sentira antes, ele não compreendia o que exatamente eram aquelas pessoas
Ⅰ – Centelha e SombraA trilha se perdia. A floresta de Myralis parecia mudar de humor a cada amanhecer. Árvores que antes ofereciam passagem agora fechavam seus troncos retorcidos como muralhas. Galhos rangiam, folhas sussurravam em línguas esquecidas.Nos três primeiros dias, Evelin e Eros caminharam em silêncio atento, olhos buscando qualquer sinal — de vida, de perigo, de... alguma saída.Eros chutou uma pedra que rolou até se perder sob uma raiz grossa. — Você tem certeza que essa floresta não está viva?Evelin olhou de lado, arqueando uma sobrancelha. — E quem te disse que ela não está?Ele parou, encarando-a. — Tá brincando.— Não. — Ela respirou fundo, passando os dedos pela tatuagem que agora marcava seu antebraço — um desenho circular, formado por linhas que se entrelaçavam como galhos de árvore, estrelas e espirais flamejantes no centro. A marca parecia pulsar, viva, alinhada com o próprio coração dela.— Desde o templo... eu sinto a floresta. — Ela olhou em volta, como que
Último capítulo