Evelin
O sol ainda não havia ultrapassado as montanhas que cercavam Thariel quando Evelin já estava de pé, os pés descalços tocando a terra fria, o corpo curvado sobre os sulcos do campo. As manhãs eram sempre iguais — carregadas de neblina, de silêncio e do cheiro forte de barro molhado. Aos olhos de todos, ela era apenas mais uma entre tantos camponeses: dedicada, quieta, eficiente. Arava a terra com firmeza, sem nunca reclamar, e era conhecida por trabalhar mais horas do que o necessário. Isso garantia seu sustento e, mais importante, sua discrição. Ser invisível era uma escolha estratégica.Enquanto guiava o velho arado de madeira preso a dois boiotes magros, Evelin sentia os dedos das mãos formigarem. O contato constante com a terra parecia intensificar o que pulsava dentro dela — aquela força antiga que aprendera a esconder desde criança. Toda vez que o metal tocava solo profundo, havia um eco sutil em sua mente. Como se a terra lhe falasse, sussurrando memórias enterradas sob camadas de esquecimento.
Desde o encontro com Eros, esse sussurro se tornara mais nítido. O nome dele vinha como vento, como se o próprio ar quisesse carregá-lo até ela. Aquilo a incomodava. Eros não era apenas um mensageiro, disso ela tinha certeza. Seu olhar, os gestos contidos, a forma como reagira ao símbolo de Oriana… nada naquilo era coincidência.
À medida que o dia avançava, Evelin terminava seu turno nos campos e evitava os olhares curiosos na vila. Recolheu a sacola de raízes que trocaria por tecido e chá e seguiu direto para a floresta. Ninguém a impediu. Ninguém nunca impedia. Ainda a viam como a órfã trabalhadora, isolada e estranha, mas inofensiva. E isso funcionava.
Naquela tarde, caminhou mais fundo, além da clareira, seguindo um caminho pouco marcado entre pedras cobertas de líquen e árvores tão velhas quanto os primeiros registros do reino. Estava decidida a retornar ao antigo santuário — uma cripta esculpida antes mesmo da Névoa surgir, abandonada e selada há décadas. Diziam que era maldita. Ela sabia que era apenas esquecida.
As raízes que cobriam a entrada pareciam vivas, e a madeira da porta resistiu como se soubesse o que ela buscava. Evelin sussurrou palavras antigas — que não aprendera, mas lembrava — e a madeira rangeu, abrindo-se para a escuridão.
Dentro, o ar era denso, carregado de poeira e silêncio. As paredes de pedra úmida tremeluziam à luz azulada que saía das chamas em suas mãos. O corredor se estreitava até alcançar uma câmara circular, com um altar de pedra ao centro. Atrás dele, um mural de símbolos: os quatro elementos, dispostos em círculos concêntricos — fogo, água, terra, ar — e, ao centro, um quinto símbolo: uma centelha flamejante, rodeada por espirais.
Evelin se aproximou. Sua respiração acelerou quando tocou o entalhe da centelha.
Uma dor aguda percorreu sua mente. E então vieram as imagens:
Uma mulher de olhos dourados e cabelos cor de cobre, envolta em uma luz que oscilava entre as cores dos quatro elementos. Oriana. Estava diante de um grupo, segurando um medalhão, enquanto o céu atrás dela se rasgava em dois tons: um azul límpido e outro coberto por névoa densa. Um homem se afastava, levando uma criança ruiva em seus braços. Um exército se formava ao fundo, com armaduras marcadas pelo mesmo símbolo que Eros havia tocado na rocha. E a voz — não de Oriana, mas da própria Evelin — sussurrando: “Eu me lembro.”
A visão cessou com um estalo. Evelin cambaleou para trás, respirando com dificuldade.
— Isso não é só memória — murmurou para si mesma. — É um chamado.
Ao sair do santuário, as sombras já se alongavam entre as árvores. E foi então que sentiu: não estava sozinha. Atrás de uma formação rochosa, uma silhueta se moveu — rápida demais para ser um animal, precisa demais para ser um camponês.
Ela não correu. Endireitou-se, acendeu uma chama entre os dedos e manteve o olhar firme.
— Sei que está aí.
Silêncio. Depois, o som sutil de alguém recuando. Mas Evelin já tinha certeza: estava sendo observada. E não era a primeira vez. A Névoa estava se aproximando, e não seria mais possível fingir que tudo era coincidência.
No caminho de volta, seus passos foram silenciosos, mas sua mente gritava. Aquilo tudo… o símbolo, a memória, o encontro com Eros… a centelha no mural… Não era apenas sobre Oriana. Era sobre ela. Sobre o que estava prestes a despertar.
Chegou à vila já noite adentro, passando despercebida como de costume. Mas agora, a invisibilidade não a protegia — apenas a isolava do que viria.
Antes de dormir, acendeu uma vela e, com uma lâmina, desenhou discretamente a centelha na madeira da parede. Um lembrete. Um aviso.
Eles querem silêncio porque temem a lembrança.
Evelin agora lembrava. E isso mudava tudo.