O amanhecer em Thariel era silencioso, abafado pela espessa neblina que rastejava sobre os campos. O orvalho pesava nas folhas como lágrimas adormecidas, e o ar carregava o cheiro ácido da terra revolvida. Para muitos, aquilo era um dia comum. Para Evelin, porém, era o início de algo que ainda não sabia nomear.
Como fazia todos os dias desde os doze anos, ela acordou antes do sol e rumou aos campos com a enxada ao ombro. A poeira da estrada grudava nos calcanhares, e a respiração ritmada era um mantra silencioso contra a exaustão. Ao redor, outros camponeses também se adiantavam em silêncio, acenando com pequenos gestos. Evelin era conhecida, mas não entendida. Trabalhadora, constante, mas introspectiva demais para os padrões de Thariel.
Ela arava a terra com força e precisão, transformando o solo em sulcos perfeitos onde o milho brotaria. Era uma tarefa repetitiva, mas Evelin a fazia como quem cultiva um segredo, deixando que cada movimento das mãos libertasse um pensamento preso. Enquanto os bois arrastavam o arado, Evelin se lembrava das palavras de Eros, do jeito como seus olhos brilharam ao dizer o nome de Oriana. Algo naquele homem quebrava a lógica do mundo. E ela reconhecia essa quebra, porque a sentia desde a infância.
Quando o trabalho cessou ao meio-dia, Evelin afastou-se dos campos com uma cesta de raízes e pães. Refugiou-se na pequena clareira escondida entre salgueiros tortos — um lugar onde as palavras voltavam a ter som, e os pensamentos deixavam de ecoar sozinhos.
Ali, sentada sobre a pedra que chamava de trono dos ventos, Evelin retirou um caderno antigo de dentro do manto. Nele, desenhava os símbolos que sonhava desde a infância. Um triângulo cercado de espirais. Um círculo cortado por chamas. Um olho aberto entre folhas. E agora, pela primeira vez, desenhou o rosto de Eros. Incompleto, mas vivo.
Ela não compreendia o que era aquele laço, mas sabia que ele existia. Não um amor repentino, não uma paixão tola. Mas uma chama antiga que encontrava eco em sua própria.
Ela não compreendia o que era aquele laço, mas sentia sua presença silenciosa, como o arrepio de uma memória antiga. Era como se suas existências reconhecessem uma à outra — como se, muito antes de qualquer palavra, já tivessem caminhado sob o mesmo céu.
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No outro extremo do reino, na sede da Névoa, Eros também não encontrava repouso.
A sede da Névoa, cravada no ventre da Montanha de Ezrael, era fria e silenciosa. Paredes de pedra escura guardavam sussurros antigos, e as tochas jamais dissipavam a penumbra por completo. A sala de reuniões era adornada com estandartes da Nova Era e mapas com linhas que serpenteavam os limites de Veridia.
Eros, de uniforme cinza, sem medalhas visíveis mas com o respeito de todos, permanecia em pé diante da mesa de comando. Seus olhos, porém, não estavam ali. Estavam em Thariel.
— Capitão Eros, relatório da infiltração — ordenou o General Harun, um homem magro e impiedoso com olhos de gelo.
Eros hesitou por um segundo antes de responder:
— A vila mantém a ordem estabelecida. Nenhum traço visível de magia rebelde. Mas há indícios… registros antigos enterrados sob as pedras cerimoniais.
O general cruzou os braços.
— Indícios não são provas, Capitão. A missão é clara: encontrar e reportar quaisquer rastros da antiga linhagem. E, se possível, eliminar.
Eros engoliu em seco. Aquela última parte não estava em sua essência. Não mais.
— Entendido, senhor.
Saiu da sala com a alma em conflito. Havia sido treinado para servir ao grande soberano, mas algo dentro dele se revolvia contra a frieza dos comandos. As lembranças que despertavam em sonhos, o vento que parecia responder aos seus comandos, a presença de Evelin… tudo apontava para um caminho diferente.
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Naquela mesma noite, em Thariel, Evelin observava as estrelas.
Deitada entre os fardos de palha em seu pequeno celeiro, escutava os sussurros do vento através das frestas de madeira. Pareciam formar palavras. “Lembre-se.” “Procure.” “Desperte.”
Ela sabia que a paz não duraria. Que a presença de Eros, apesar de misteriosa, era um catalisador. Não apenas para ela, mas para toda Veridia.
Em breve, as sombras que dormiam sob as cidades renasceriam.
E com elas, o passado proibido viria à tona.