Clara
O relógio de parede da sala da presidência marcava dez e quinze com um tique-taque que parecia zombar da minha concentração. Meus dedos voavam sobre o teclado, ajustando os últimos detalhes da pauta da reunião matinal. O ar naquele lugar cheirava a café caro e poder: madeira polida, couro envelhecido e um silêncio tão pesado que dava para ouvir o eco dos meus próprios pensamentos.
Segundo dia no cargo. Primeiro erro e estou fora.
A Ferraz Holding não era o tipo de lugar que perdoava deslizes. Eu sabia disso antes mesmo de pisar ali. Os móveis escuros, o brasão da família ostentado na parede como um aviso, até o vidro fumê das divisórias, tudo gritava "você é substituível".
Estava revisando os relatórios pela terceira vez quando os passos ecoaram no corredor. Firmes. Decididos. Diferentes dos de Roberto.
A porta abriu-se sem cerimônia.
E lá estava Theo Ferraz novamente.
O terno azul-marinho moldava seus ombros como se tivesse sido feito sob medida para provocar. E provavelmente tinha. O cabelo, levemente desalinhado, era a única coisa que desafiava a rigidez daquele lugar. Seus olhos percorreram a sala com aquele olhar preguiçoso, até pousarem em mim.
— Bom dia, Clara — disse, com um sorriso que faria qualquer santinha tropeçar no salto. — Ou devo dizer... "senhorita Teixeira"?
Ajustei a postura, segurando o tablet como um escudo.
— "Senhor Ferraz" — respondi, mantendo o tom profissional, embora meu coração batesse como um tambor descompassado. — Seu pai está finalizando uma ligação. Pediu que aguardássemos aqui.
Ele entrou, deixando para trás um rastro de arrogância e um cheiro discreto de alguma fragrância cara que não reconheci, mas que era irritantemente boa.
— Então agora você controla a agenda dele. — Aproximou-se da mesa de reuniões, os dedos percorrendo as pastas como quem avalia um inimigo. — Aposto que a madrinha está orgulhosa.
Não mordi a isca.
— Teresa confia em mim. E eu não pretendo decepcioná-la.
Theo puxou uma cadeira, mas não se sentou. Seus olhos pousaram em uma pasta com seu próprio nome: "Apresentação dos resultados do segundo trimestre - Theo Ferraz."
— Que fofo. — O sarcasmo pingava da voz dele. — Meu pai ainda finge que eu tenho alguma utilidade por aqui.
Cruzei os braços.
— Talvez seja hora de provar que tem.
Ele virou-se devagar, e pela primeira vez, vi algo além de tédio naqueles olhos. Algo como um brilho de desafio.
— Engraçado. Você fala como se me conhecesse.
— E você age como o herdeiro que acha que o mundo gira em torno do seu sobrenome.
O canto da boca dele subiu, lento, como um gato diante de um rato que resolveu revidar.
— E você é a garota que acha que me entende porque leu uma manchete de revista.
O ar entre nós ficou elétrico. Ele deu um passo à minha frente, e eu não recuei.
— Cuidado, Clara. — A voz dele era um aviso e uma provocação. — Se continuar assim, vai acabar me divertindo demais.
Foi quando a porta se abriu.
Roberto Ferraz entrou, seguido por dois homens de ternos impecáveis. Investidores, certamente. Seu olhar passou por mim, por Theo, e então pelo espaço mínimo que nos separava. Algo na expressão dele endureceu.
— Bom dia, Clara. Filho.
Entreguei a pasta a Roberto, evitando olhar para Theo.
— Tudo pronto para a apresentação, senhor.
— Ótimo. Vamos começar. — A voz dele era calma, mas o olhar que lançou a Theo dizia: "Não estrague isso."
******
A reunião mal tinha começado e eu já me arrependia de ter me arrumado tanto. A blusa leve colava na pele, denunciando o calor. Ou seria o desconforto de ter Theo sentado à minha frente, relaxado demais para alguém que dizia não se importar?
Roberto começou falando sobre transições administrativas, o novo modelo de agenda executiva e a minha adaptação ao cargo. Eu anotava tudo, atenta, com a caneta firme na mão. Ou, pelo menos, tentando parecer atenta, porque o olhar de Theo queimava na minha pele.
Após a saída dos investidores, a sala pareceu pequena diante dos olhares que ele continuava a me lançar.
— E então, Clara, você conseguiu reorganizar os relatórios pendentes? — perguntou Roberto, cordial.
— Sim, senhor. Fiz questão de começar pelos mais urgentes, priorizando as solicitações diretas da presidência.
— Excelente. Teresa me disse que você é detalhista. Isso me agrada — ele sorriu. — Theo, talvez você devesse observar o comprometimento dela. Pode te inspirar a assumir algo com mais seriedade.
— Com certeza — Theo respondeu, com a voz carregada de ironia. — Estou fascinado com o comprometimento da nova funcionária. De fato, é… inspirador.
Senti o calor subir pelo pescoço até as bochechas. O tom dele era dúbio. Para Roberto, soava como um elogio qualquer. Mas eu sabia o subtexto. A forma como os olhos dele deslizavam pelo decote sutil da minha blusa quando disse "inspirador". A forma como tamborilar os dedos na mesa, como se testasse minha paciência.
Fingi não perceber. Mantive o olhar nos papéis, mas minha mão começou a tremer levemente. Ele notou, claro. E sorriu, satisfeito.
— Clara, você poderá acompanhar a reunião de amanhã com os representantes da Sales Ltda. — continuou Roberto. — Quero que observe como faço a mediação. Isso será importante para sua evolução aqui dentro.
— Claro, senhor — murmurei, grata por ter algo concreto em que focar.
— A propósito, Theo, não quero problemas — Roberto continuou, deixando claro com as palavras seguintes que estava atento aos mínimos detalhes. — Não quero outro escândalo envolvendo o nome desta empresa.
— Que ofensa — ele dramatizou. — Está me confundindo com o homem que fui… semana passada?
Roberto riu, balançando a cabeça.
— Não me obrigue a falar com você como se ainda fosse um garoto.
Theo ergueu as mãos em rendição, mas lançou-me um olhar cheio de promessas. Eu me encolhi na cadeira.
A reunião terminou alguns minutos depois. Roberto recebeu uma ligação urgente e saiu da sala com pressa, já com o celular no ouvido.
Fiquei recolhendo meus papéis, ainda processando o que tinha acontecido, quando Theo se aproximou por trás, com passos leves demais para um homem do tamanho dele.
— Está sempre tão corada… — murmurou. — É por vergonha ou por raiva?
Virei-me bruscamente, mas não calculei o movimento. Meu sapato agarrou no tapete e o tropeço foi inevitável. Instintivamente, Theo segurou minha cintura com firmeza antes que eu caísse sobre ele. Seu corpo era quente, sólido… perto demais.
Nossos rostos estavam perigosamente próximos. Por um segundo, ninguém respirou.
— Eu avisei — ele disse em um sussurro rouco. — Você ainda vai tropeçar em mim de um jeito que não vai querer levantar.
Soltei-me rapidamente, sentindo o coração disparar. Recolhi meus papéis como se aquilo fosse me proteger dele, mas sabia… estava perdida.
Porque ele não precisava me tocar para me desestabilizar.
Mas quando tocava… eu simplesmente esquecia de respirar.