Amara
Chego no meu apartamento já são dez da manhã de sábado. Abro a porta e encontro minha colega de quarto pintando as unhas na sala.
— Achei que ia passar o dia inteiro com o João — Jaqueline comenta, sem tirar os olhos das unhas.
— Não, ele foi para a casa dos pais — respondo, me jogando no sofá.
— E você não foi com ele?
— De jeito nenhum. Ainda não estou pronta para conhecer a família dele — falo, abrindo a boca num bocejo.
— Eita... a noite foi boa, hein? — ela diz com malícia.
— Me diz uma coisa, Mara... Por que você não quer conhecer a família dele? Ou será que é ele que não quer te levar? — Jaqueline pergunta, agora me olhando fixamente.
— Ele nunca me chamou, e eu também nunca insisti. E, sinceramente, não me incomoda. Eu o conheço, mas sei que, quando me formar, vou voltar pra minha casa, pra minha família. E ele... vai seguir a vida dele — digo, com um certo peso na voz.
— Achei que vocês dois fossem apaixonados, que enfrentariam qualquer obstáculo juntos — ela comenta, com um olhar triste.
— Não é isso, Jaqueline. Apenas... nós somos diferentes. Temos sonhos diferentes. Eu não quero ser só a esposa dele. Quero ter minha vida, meu trabalho, meu dinheiro. Ser dona do meu próprio nariz.
Ela me olha em silêncio, com uma expressão de admiração. Como se as minhas palavras tivessem feito algo despertar dentro dela.
Já era quase fim de tarde quando meu telefone tocou. Do outro lado da linha, a voz aflita da minha mãe.
— Oi, minha filha. Está tudo bem?
Ela pergunta, mas eu sei muito bem que não é sobre mim que ela quer falar. É sobre o meu irmão.
— Estou bem, mãe. E aí, como estão as coisas por aí? — pergunto, já imaginando o que vem a seguir.
— Filha... seu irmão está com problemas. Está envolvido com jogatina, fica até tarde na rua e volta embriagado. Nem liga mais pra própria filha...
— Mãe, a senhora precisa fazer alguma coisa. O Márcio não é mais uma criança. Ele tem que parar de beber e seguir em frente com a vida. Só porque a esposa dele morreu, não significa que ele tem que se destruir desse jeito — digo, irritada.
Ela fica em silêncio por alguns segundos, e então pergunta, num tom baixo e envergonhado:
— Filha... você tem algum dinheiro pra me arrumar?
— Mãe... a senhora sabe que estou no último semestre. Tenho que pagar a faculdade. Não tenho muito, mas vou mandar o que eu conseguir, tá bom?
— Obrigada, filha. Eu não sei o que seria de mim sem você. Te amo. Seu pai também. Fica com Deus — ela diz, encerrando a ligação.
Me jogo na cama, um pouco chateada. Minha mãe só liga pra pedir dinheiro. Não que eu não queira ajudar, mas às vezes cansa. Eu não tenho muito. Das outras vezes, até pedi emprestado para poder mandar algo. Faço de tudo pra economizar. Não gasto com nada além do necessário.
Fico me perguntando como o meu irmão consegue gastar tanto. Ele mora num sítio, numa cidadezinha onde quase não tem onde gastar dinheiro. Só tem um bar, meia dúzia de lojas. Mesmo assim, ele consegue se afundar...
Às vezes, tenho vontade de ligar pro Márcio e despejar tudo o que penso, dar um choque de realidade, fazer com que ele enxergue o quanto está machucando a todos ao redor — principalmente a minha mãe, que mal consegue dormir de preocupação. Mas quando pego o telefone, falta coragem. Fico imaginando a voz dele, arrastada, cansada, talvez até agressiva, e desisto.
No fundo, sinto um peso estranho, como se cada escolha ruim dele fosse uma responsabilidade minha também. É um ciclo cansativo: minha mãe liga, eu me preocupo, tento ajudar do jeito que posso, mas tudo parece insuficiente diante do buraco em que ele se colocou.
Olho o teto do quarto, o ventilador lento riscando o silêncio, e penso em como a vida tomou esse rumo tão torto. Não era pra ser assim. Lembro de quando éramos crianças, correndo pelo quintal, inventando brincadeiras e promessas para o futuro. Nada daquilo parecia prever os dias de hoje.
Amanhã, talvez, eu tente falar com ele. Ou talvez só continue aqui, esperando que alguma coisa — qualquer coisa — mude.
A memória daqueles dias se dissolve, como se fosse uma fotografia antiga esquecida no fundo de uma gaveta. Sinto uma saudade que arde, não só do que fomos, mas do que nunca chegamos a ser. A responsabilidade pesa, uma corda invisível me puxando para um lugar que não escolhi. Queria poder desligar tudo por uma noite, dormir sem o medo de acordar com outra ligação da minha mãe, sem o receio de notícias que me tirem o chão.
Respiro fundo, tentando dissipar a sensação de impotência. Penso em buscar ajuda, em conversar com alguém de fora, mas a vergonha é uma sombra persistente. No fundo, sei que não posso carregar o mundo nas costas, mas desapegar desse papel de salvadora parece impossível.
O cansaço me envolve como um cobertor pesado. Mesmo assim, amanhã vou me levantar cedo, estudar, trabalhar, fazer o que for preciso pra garantir que, pelo menos, o meu próprio futuro não escape pelos dedos. Talvez um dia as coisas mudem. Por enquanto, só me resta esperar, torcer, economizar cada centavo e, acima de tudo, não deixar que a esperança se apague de vez.
Ainda assim, me pego fazendo planos silenciosos, rabiscando alternativas na mente, como se pudesse reorganizar o caos só com força de vontade. Imagino cenários em que tudo melhora: minha mãe tranquila, meu irmão reencontrando um caminho, eu finalmente livre desse nó na garganta. Mas esses pensamentos logo se desfazem, engolidos pela rotina. Coloco uma música baixa para tentar distrair, mas até as melodias parecem carregar o mesmo peso.
O sono custa a chegar. Viro de lado, abraço um travesseiro, torcendo para que, ao menos nos sonhos, eu possa me sentir leve de novo. No escuro, prometo a mim mesma que, ao acordar, darei um passo — ainda que pequeno — em direção a pedir ajuda. Talvez conversar com uma amiga, escrever tudo num caderno, ou só permitir que a dor exista sem culpa. Porque, no fundo, já não dá para fingir que tudo se resolve sozinho. E, quem sabe, dividir o peso seja o primeiro passo para recomeçar.