Capítulo 07 - Arianna

Arianna ainda tremia por dentro.

O coração batia tão rápido que ela sentia nas têmporas, mas a voz saía firme, quase doce, cantando a cantiga que a mãe dela cantava quando tinha pesadelo: “Boi, boi, boi, boi da cara preta… pega essa menina que tem medo de careta…”

Ava, sentada no trocador improvisado em cima da cômoda, olhava fascinada para o ursinho de pelúcia surrado que Arianna tirara da mala. Jogava o bichinho para o alto, ria quando caía, pegava de novo. Era o mesmo urso que dormia com ela desde os sete anos, com um olho remendado e o laço desbotado. Arianna nunca imaginou que, no primeiro dia de trabalho, ele seria o herói da noite.

Fralda trocada, cheirinho de talco no ar, choro zerado.

Milagre.

Ela pegou Ava no colo, beijou a testa quente e saiu pelo corredor. Quando chegou na sala de jantar, David parou no meio da frase. Os olhos verdes dele – meu Deus, que olhos – se fixaram nas duas como se não acreditasse no que via.

— Onde fica o quarto dela? — Arianna perguntou, abrindo o sorriso mais profissional que conseguiu.

David coçou a nuca, sem graça.

— Ainda não tem. A reforma começa amanhã. Os móveis chegaram hoje, mas ninguém montou.

Dona Lúcia completou, com aquele tom de quem já está acostumada com a bagunça do patrão:

— O berço, a cômoda, tudo está nas caixas no quarto de hóspedes.

Arianna piscou, segurando Ava mais firme.

— Então… a bebê vai dormir onde hoje?

David deu de ombros, exausto.

— Com você. Por enquanto. Algum problema?

Arianna sentiu o rosto esquentar.

— Nunca dormi com uma criança do lado… e se eu virar em cima dela? Se eu sufocar ela sem querer?

David deu um passo à frente. De perto era pior. Alto, cheirava a sabonete caro misturado com cansaço, barba por fazer, voz grave.

— Eu pago a mais. O que você quiser.

Ela engoliu em seco. Ele estava tão perto que ela precisou levantar o queixo para encarar. Batia exatamente na altura do peito dele. Sentiu-se minúscula.

— Tenho medo de machucar ela…

— Pago o dobro esse mês — ele cortou, sem hesitar. — Dezesseis mil líquidos. Só pra essa noite não virar um caos.

Dezesseis mil.

As contas atrasadas dançaram na cabeça dela como um coral de anjos. Luz, aluguel, remédio da mãe, nome limpo no SPC. Tudo pago. Sobrando ainda.

— Tudo bem — sussurrou, e depois mais firme: — Tudo bem. Eu fico com ela.

David soltou o ar que nem sabia que estava segurando.

Dona Lúcia bateu palma leve.

— Ótimo. Senhor Martel, o jantar está na mesa. E senhorita Lima, fiz um purê de batata-doce com caldo de carne pra Ava. Está morno.

Arianna agradeceu com os olhos marejados de gratidão. Cozinhar nunca foi o forte dela; queimava até ovo mexido.

Sentou-se à mesa enorme de doze lugares com Ava no colo, a bebê já esfregando os olhinhos de sono. Outra funcionária, dona Neide, colocou o pratinho na frente delas e deu um sorriso tímido antes de sumir.

Arianna ofereceu a primeira colherada. Ava abriu a boquinha como passarinho, engoliu, pediu mais. Comia com vontade, batendo palminhas de leve.

— Ela já sabe comer direitinho — dona Lúcia comentou, satisfeita. — A mãe deve ter começado a introdução alimentar cedo. Que bênção.

— Pois é… — Arianna respondeu baixinho, sentindo um aperto no peito ao lembrar do que dona Lúcia contara mais cedo. A mãe morrendo. — Hoje pode ser um pouco tarde, mas amanhã já coloco no horário certinho. Jantar até às 19h no máximo, pra digerir bem antes de dormir.

Dona Lúcia anotou mentalmente, já planejando o mural da cozinha.

Outra colherada e Ava sorrio, o tempo passou depressa que quando Arianna percebeu, David entrou na sala de jantar de calça de moletom cinza e regata preta, cabelo ainda úmido do banho, gotinhas escorrendo pelo pescoço. O cheiro de sabonete masculino invadiu o ambiente inteiro. Os braços definidos, a tatuagem discreta em formato tribal no bíceps esquerdo, o peito largo marcando o tecido fino.

Arianna quase deixou a colher cair.

Pecado ambulante.

Era isso que ele era.

Ele se sentou ao lado delas – ao lado dela – e o espaço pareceu encolher. Ava, ao ver o pai, esticou os bracinhos gordos e soltou um “da-da!” feliz, sujando de purê a mãozinha.

David congelou por meio segundo, depois abriu um sorriso tão genuíno, tão perdido, que Arianna sentiu o coração dar um pulo idiota.

— Oi, filha… — ele murmurou, a voz rouca de emoção, e limpou a mãozinha dela com o guardanapo.

Arianna desviou o olhar rápido, focando no pratinho. Não podia olhar. Não podia reparar na covinha que aparecia quando ele sorria, nem na veia que marcava o antebraço, nem no jeito que ele olhava pra Ava como se ela fosse a única coisa que importava no mundo inteiro naquele segundo.

Porque se olhasse demais, ia se encrencar.

Regra 35. Multa de cem mil. Demissão sumária.

E, pior: ela não podia se apaixonar pelo chefe que pagava as contas dela.

Terminou de alimentar Ava em silêncio, limpou a boquinha dela com todo cuidado, enquanto David jantava olhando para as duas de canto de olho.

Quando a bebê bocejou pela terceira vez, Arianna se levantou.

— Vou dar banho nela e colocar para dormir. Já está tarde.

David só assentiu, mas o olhar dele acompanhou cada passo dela até o corredor.

Na segurança do quartinho de hóspedes, com Ava já quase dormindo no colo, Arianna encostou a testa na parede fria e respirou fundo.

— Arianna, sua burra — sussurrou pra si mesma. — Ele é lindo, rico, perdido e agora é pai solo. É cilada pura. Foca no salário. Foca na Ava. Foca em qualquer coisa que não seja o braço dele.

Mas o coração, teimoso, já batia fora do ritmo.

E a noite ainda estava só começando.

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