Capítulo 06 - David

Ava chorava no banco traseiro como se alguém estivesse arrancando pedaços dela.

Um choro rouco, cortante, que subia e descia em ondas de desespero puro. David estava com as duas mãos enterradas no cabelo, os cotovelos apoiados nos joelhos, o corpo inteiro curvado para frente. O paletó Tom Ford estava amarrotado, a gravata frouxa, o rosto pálido de quem não dormia direito há dias e tudo isso em apenas alguns minutos com a filha. Ele já imaginava como seria dias, semanas, meses estaria parecendo um louco fugido do hospício.

Ele já tinha tentado tudo.

Mamadeira – ela cuspiu o bico com raiva.

Chocalho que a assistente social entregou junto com a bolsa da bebê – Ava jogou longe.

Até cantou, com a voz baixa e sem jeito, um pedaço de “Yellow” do Coldplay que ele lembrava da época da faculdade. Nada. Absolutamente nada funcionava.

— Ela deve saber que está indo pra longe da mãe — murmurou Seu Antônio, o motorista, sem tirar os olhos da avenida clareada pelos faróis dos outros carros. — Bebê sente essas coisas, doutor.

David soltou um suspiro tão pesado que pareceu doer no peito.

— Eu também sinto — respondeu, quase sem voz. — E eu nem conheço a mãe direito.

A verdade era essa: ele estava apavorado. Apavorado de verdade. No fundo do estômago tinha um nó que não desatava desde o hospital, desde o momento em que Rafaela colocou Ava nos braços dele e disse adeus com os olhos. Aquela imagem não saía da cabeça: Rafaela tão magra, tão frágil, beijando a filha pela última vez. E agora a filha chorava sem parar, e ele não sabia o que fazer, e a noite estava só começando.

— Você tem filhos, Antônio? — perguntou, tentando agarrar qualquer coisa que fizesse sentido.

O motorista sorriu e ele viu pelo retrovisor.

— Gêmeos. Dois meninos. Quando nasceram, choravam tanto que a gente achava que nunca mais ia dormir na vida. Minha mulher quase enlouqueceu. Eu também.

— E eles choravam… assim?

— Um mais que o outro. Às vezes os dois juntos. Parece que o mundo tá acabando, né? Mas passa. Tudo passa quando a gente aprende o jeito.

David bufou, quase riu de nervoso.

— Se ela não parar de chorar assim eu vou enlouquecer antes de aprender o jeito — confessou olhando para a filha pelo canto do olho.

O carro finalmente estacionou na garagem subterrânea. O choro de Ava ecoou pelas colunas de concreto. David saiu tropeçando, abriu a porta traseira e soltou o cinto da cadeirinha com dedos trêmulos. Pegou a filha no colo – o corpinho quente, pesado, se debatendo – e a apertou contra o peito como quem segura a própria salvação.

Alguns moradores que passavam olharam, pararam, cochicharam.

“É o David Martel?”

“Com uma criança?”

“Impossível.”

“Parece que tá chorando também…”

Ele nem ligou. Só queria chegar em casa.

No elevador de vidro o choro parecia ainda mais alto, ricocheteando nas paredes. David balançava Ava de um lado para o outro, desajeitado, o braço já doendo.

— Ava… por favor, filha… sou eu… o papai… vai ficar tudo bem…

Mentira. Ele não acreditava nem na própria voz.

As portas abriram direto na sala ampla, iluminada apenas pelos abajures e pelas luzes da cidade lá fora.

E ali estava ela.

Arianna.

De pé, ao lado de dona Lúcia, com o rabo de cavalo meio bagunçado da correria do dia, camiseta branca simples, calça jeans, tênis surrado. Os olhos castanhos enormes, assustados, mas ao mesmo tempo… calmos. Como se ela já soubesse exatamente o que fazer.

David nem pensou duas vezes. Num impulso desesperado estendeu a filha para ela.

— Pelo amor de Deus… faz ela parar. Eu já tentei tudo. Tudo.

Arianna pegou Ava no colo com uma naturalidade que fez David sentir inveja e alívio ao mesmo tempo. A bebê se aquietou um pouquinho só com o cheiro novo, com o balanço diferente. Fungou forte, as lágrimas ainda escorrendo, mas o grito agudo diminuiu um tom.

— Oi, meu amor… oi… — Arianna sussurrou, encaixando a cabecinha da bebê no ombro. — Como ela se chama?

— Ava — David respondeu, a voz falhando de cansaço. — Ava Martel.

Ele cambaleou até o sofá de couro branco e se jogou ali, o corpo inteiro pesado como se tivesse carregado o mundo nas costas. Passou as mãos no rosto, tentando respirar fundo.

Do canto do olho viu dona Lúcia dar um sorrisinho pequeno, quase maternal, pra ele.

Arianna já caminhava pelo corredor com Ava no colo, cheirando o pescocinho, falando baixinho:

— Acho que é fralda, tá bem pesadinha… e talvez fome de novo… ou saudade… coitadinha…

David só fez um gesto cansado com a mão.

— Vai. Faz o que precisar. Seu trabalho começa agora.

Quando as duas sumiram no corredor, ele ficou sozinho com dona Lúcia na sala imensa. Bufou alto, fechou os olhos, deixou a cabeça cair no encosto do sofá.

— A menina é bonita — dona Lúcia comentou, vindo da cozinha com um copo d’água pra ele.

David abriu um olho, meio sorriso exausto.

— A bebê ou a babá?

O tapa na nuca veio rápido, mas sem força de verdade.

— Sua filha, seu sem-noção! — ela ralhou, mas o olhar era carinhoso. — E abaixa essa bola, David. A moça veio trabalhar, não pra virar mais uma na sua lista. Se a agência descobrir que você olhou torto pra ela, levam embora na mesma hora. Aí quero ver quem vai levantar de madrugada pra trocar fralda.

David esfregou a nuca, o sorriso morrendo um pouco.

— Foi só um comentário, Lúcia… Eu só… reparei. Ela é bonita pra caramba. E eu não sou de ferro.

— Pois finge que é, pelo menos até a menina criar juízo. E outra: eu vi o uniforme que você mandou comprar com o Willian. Aquela sainha ridícula branca? Pelo amor de Deus, ela é babá, não fantasia de Halloween.

David deu uma risadinha culpada.

— O Willian jurou que a babá dele usa uma coisa parecida e que fica…

Outro tapa, mais fraco. William e David eram amigos inseparáveis de infância, ele morava no mesmo condomínio em outro prédio, mas pelo serviço exaustivo eles só se viam aos finais de semana e as vezes nem isso eles conseguiam.

— O Willian é casado e a babá dele tem sessenta e dois anos e quatro netos. Deixa a moça em paz.

A governanta disse com a mão na cintura, ela conhecia a mulher, conhecia toda a família de Willian e gostava muito do amigo de David, afinal ela trabalhava ali a anos e os viu crescer. Tinha ambos quase como seus filhos de coração.

De repente… silêncio.

Um silêncio tão profundo que parecia impossível depois de quase uma hora de choro ininterrupto.

David ergueu a cabeça devagar.

Do corredor vinha apenas a voz baixa, doce, meio desafinada de Arianna cantando uma cantiga antiga de ninar que ele nem sabia que ainda existia.

Ava tinha parado.

Completamente.

David sentiu um negócio esquisito apertar o peito – alívio, gratidão, medo, tudo junto. Olhou para dona Lúcia, que apenas sorriu e balançou a cabeça, como quem diz “eu te avisei”.

Ele se levantou devagar, ainda meio zonzo, e murmurou quase sem querer:

— Acho que a gente vai sobreviver à primeira noite…

E, pela primeira vez desde que tudo começou, ele acreditou de verdade.

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