Ele devia ter seus trinta e poucos anos. Cabelos grossos, escuros, penteados com precisão milimétrica, do tipo que não conheciam vento ou um dia ruim. A pele bronzeada contrastava com o terno cinzento de corte impecável, e o conjunto todo passava a impressão de que aquele homem só andava por aí patrocinado por alguma revista de moda executiva.
Paloma o observou se aproximar com uma pasta de couro na mão; claro que era de couro, a essa altura ela já estava começando a achar que até as canetas da empresa eram feitas de marfim. O andar dele era firme, os passos calculados, como se até o chão soubesse que devia se alinhar à presença dele. Mas o que realmente a incomodou foram os olhos. Castanhos, sim, mas com uma tonalidade que parecia dizer “estou te analisando, te julgando e te rotulando em três segundos”. Paloma sentiu um frio na espinha. Ou talvez fosse só o ar-condicionado. A forma como ele a olhou a fez se sentir um sapato fora do lugar na prateleira de uma loja de grife. Isso despertou nela um desconforto imediato. Suspeita? Desprezo? Um leve tédio? Tudo isso reunido num único olhar profissionalmente polido. A voz dele, no entanto, veio sem emoção, como se tivesse sido ensaiada numa reunião de RH: — Paloma Franco? Pronto. Lá se foi a confiança momentânea que ela tinha conquistado ao ver a foto do simpático João C. Monteiro. Evaporou mais rápido que gota d’água no asfalto do sertão ao meio-dia. O homem à sua frente era tudo, menos receptivo. Era claro como vidro de aquário que ele era reservado. Reservado ao ponto de parecer blindado. Paloma percebeu, que simpatia ou gentileza não teriam qualquer efeito ali. Se quisesse algum resultado, teria que apelar para algo mais poderoso do que charme ou educação. O olhar dele desceu por seu corpo com a sutileza de um scanner de aeroporto. Arrogante, técnico, avaliando não só o vestido florido dela, mas também o cabelo cacheado, os sapatos simples e a bolsa falsificada. Ele se sentou no braço de uma poltrona, porque, aparentemente, usar a cadeira inteira era luxo para mortais; abriu a pasta com a calma de quem todo o tempo do mundo. — Tenho seu e-mail impresso comigo — disse ele, sem qualquer emoção na voz. Naquele instante, Paloma teve certeza: o desprezo não estava só no olhar dele. Estava na voz controlada, nas sobrancelhas ligeiramente franzidas, no jeito preciso como ele manuseava o papel, como se até isso fosse mais importante do que ela. O nervosismo que antes a deixava inquieta agora fervia em raiva. Tinha marcado uma reunião com o presidente da companhia, aquele senhor simpático da foto na parede, e não ia discutir o assunto com algum executivo arrogante. Ainda mais aquele homem, que parecia ter sido esculpido por alfaiates e congelado numa expressão de indiferença eterna. Paloma não confiava em gente que usava terno num calor desses sem suar uma gota. Com toda a dignidade que conseguiu reunir (e o nariz ligeiramente empinado), ela colocou a xícara de café sobre a mesa com firmeza e respondeu: — Eu prefiro esperar e conversar com o Sr. Monteiro pessoalmente — disse, erguendo os olhos com frieza ensaiada. Era o melhor que uma balconista com vestido florido conseguiria fazer diante de uma estátua de mármore vestida de executivo. Ele ergueu uma sobrancelha. Claro que ergueu. Era o tipo de homem que comunicava um livro inteiro só com o movimento da testa. — Eu sou o Sr. Monteiro. Paloma congelou. — O senhor? — repetiu, atônita. — Mas eu pensei… — seus olhos buscaram na parede a fotografia do Sr. João C. Monteiro, sorridente e bondoso como um avô de comercial de margarina. — Meu pai, o fundador da companhia — ele explicou brevemente, ao seguir o olhar dela. — Morreu, há seis anos, na pandemia de Covid-19. Eu sou César Monteiro, presidente da Indústrias Monteiro. — Sinto muito, eu não sabia. Ele inclinou levemente a cabeça, com um meio sorriso que não chegava aos olhos. — Sente muito pela morte do meu pai? Ou por ter descoberto que eu sou o presidente da companhia? Paloma torceu a alça da bolsa entre os dedos como quem tenta espremer alguma dignidade de dentro dela. Por que a ironia? Que prazer mórbido ele tinha em deixá-la desconfortável? Sentia-se mais nervosa que nunca. E, de quebra, julgada como se tivesse invadido a empresa para vender assinatura de revista. — Sinto muito pelo seu pai, claro — respondeu, tentando parecer mais firme do que se sentia. E então, num impulso estratégico, resolveu inverter os papéis e pô-lo na defensiva: — Deve ter sido muito difícil assumir a presidência da companhia, tão jovem. Ele inclinou-se ligeiramente para a frente, o tom ainda calmo, mas com aquele brilho perigoso nos olhos castanhos. — Não acho que a senhorita esteja em posição de opinar sobre juventude... ou idade. — Tenho vinte e cinco anos! — Paloma respondeu prontamente, como quem solta um protesto no susto. E logo em seguida quis se esconder atrás da cortina mais próxima. Pronto. Gritando a idade como uma adolescente brigando na fila da balada. Que bela postura para alguém que veio exigir justiça corporativa. — Uau, vinte e cinco anos... realmente uma anciã — comentou ele, sem levantar os olhos da pasta. Um sorrisinho irônico escapou no canto da boca. — O senhor entendeu o que eu quis dizer… — Se está tentando me convencer de que não é uma criança, já ficou bem claro. — interrompeu ele, lançando-lhe um novo olhar. Dessa vez, ela notou uma diferença. O olhar não era mais só analítico ou irônico. Havia... aprovação? Paloma enrubesceu. — Eu só quis dizer que não sou inexperiente. Não sou uma adolescente iludida, se é isso que está pensando. — Ótimo. Menos chance de dramas — ele fechou a pasta com um estalo seco. — Vamos ao motivo da visita? Paloma pigarreou, tentando manter a compostura. — Marquei esta entrevista com o senhor porque estou representando minha tia, Aparecida Silva. O filho dela, Charles Silva, era empregado da Indústrias Monteiro até sua morte, dois meses atrás. César Monteiro não disse nada, obviamente esperando que ela continuasse. Ele não estava tornando as coisas fáceis para Paloma, ela constatou, com amargura. — Charles trabalhou muitos anos aqui, se não me engano... — Dois — ele interrompeu. — Charles, como chefe de laboratório de bioquímica... — Charles Silva não era o chefe do laboratório de bioquímica da Indústrias Monteiro — cortou César Monteiro. — Essa posição é ocupada há cinco anos pelo Sr. Carlos Santos. Paloma o encarou numa mistura de dúvida e embaraço. Estava certa de que sua tia Cida tinha dito que Charles era o chefe do laboratório. Devia ter se enganado. Mesmo assim, continuou: — Estou certa de que o senhor se lembra que Charles havia tido um desempenho brilhante na Universidade. Ele também tinha patentes de algumas invenções no campo da Indústrias. Alguma coisa sobre... sobre fontes renováveis, ou coisa parecida. César Monteiro baixou a cabeça para a pasta novamente. Com o canto do olho, Paloma viu o último e-mail que ela havia escrito, pedindo aquela entrevista com o presidente da companhia. Enquanto ele estudava o impresso, ela não pôde deixar de observar que seus cílios eram da mesma cor dos cabelos, com o mesmo toque acobreado. — Onde exatamente você pretende chegar, moça? Acha que é a primeira vigarista que b**e na minha porta?