Funções

Fui até a pequena cadeira no canto e sentei, as mãos na beira da mesa e fechei os olhos. O som da casa parecia pulsar ao meu redor, passos correndo, risadas abafadas, o tilintar metálico de utensílios na cozinha. Eu não fazia parte de nada daquilo. Eu estava dentro, mas ao mesmo tempo fora.

Deitei de novo, abraçando a colcha áspera contra o peito. Tentei imaginar como seria se minha mãe tivesse me tratado como filha, como teria sido se eu pudesse tê-la acompanhado como filha, vê-la vestida de branco e flores em seu casamento. Mas logo espantei a fantasia. Eu sabia quem era. Eu sabia qual era o meu lugar.

Fechei os olhos e respirei fundo. O quarto era simples, quase vazio, mas pelo menos era só meu. Um espaço pequeno onde eu poderia guardar meus pensamentos sem que ninguém os julgasse. Talvez fosse o bastante. Talvez fosse a única liberdade que me restava.

Mas, no fundo, eu sabia: nada na Mansão Redcliff era realmente meu. Nem mesmo o silêncio.

**

Acordei com o sol atravessando a fresta da janela, desenhando linhas claras sobre o chão de madeira fria. Respirei fundo e levantei-me devagar. Meus pés tocaram o chão gelado, e a primeira coisa que fiz foi encarar o espelho manchado do quarto. A superfície refletia uma imagem imperfeita de mim: pele negra, olhos castanhos grandes e um cabelo rebelde que sempre provocava os olhares de reprovação de minha mãe. Era longo, cheio e indomável, e eu sempre soube que Eleanor odiava cada fio que escapava do controle que ela tanto prezava.

Com cuidado, comecei a fazer uma trança. Era uma rotina silenciosa que me acalmava, como se, ao organizar meus fios rebeldes, eu pudesse organizar meus pensamentos também. O cabelo rebelde escondia minha infância, minhas memórias e a realidade de que, naquele mundo, eu precisava ser discreta e invisível. Quando terminei, lavei o rosto com água gelada da jarra sobre a mesa, sentindo a aspereza da pedra fria contra minhas mãos. O reflexo no espelho continuava imperfeito, mas, por alguns instantes, senti-me preparada para enfrentar o que viesse.

Antes que pudesse me perder em pensamentos, um toque firme na porta anunciou a presença do empregado mais velho que agora cuidaria da minha rotina.

— Senhorita Honora, o café da manhã já está servido — anunciou a voz grave do homem de ontem à noite. Ele entrou apoiando-se na bengala, passo firme apesar da leve mancada. — Sou o senhor Witmore, mordomo desta casa desde a morte dos pais do senhor Alistair e de seu irmão, William. Hoje irei levá-la para tomar café e, depois, apresentar-lhe as funções da casa.

Assenti, ainda segurando o cabo da trança, e o acompanhei pelo corredor. Cada passo ecoava levemente, lembrando-me de que, apesar do quarto simples, da liberdade temporária que ele oferecia, eu continuava sendo observada. Hoje, aprenderia minhas tarefas e descobriria um pouco mais do ritmo da casa, aquele mundo que me era estranho e, ainda assim, necessário para minha sobrevivência.

A cozinha era enorme, iluminada pela luz que entrava pelas janelas altas, com prateleiras de madeira carregadas de panelas de cobre, travessas com pão fresco, manteiga e ovos cozidos. Havia cerca de dez empregados sentados à mesa, todos silenciosos, cada um com sua xícara ou fatia de pão. Quando entrei, senti imediatamente os olhares sobre mim. Um misto de curiosidade e estranheza, como se eu fosse um detalhe deslocado no ambiente.

A menina de ontem, a que me encarara quando chegara ao quarto, estava ali. Sorriu levemente, cordial, mas não disse nada por enquanto.

Uma das cozinheiras, gordinha, com cabelo preso em coque frouxo, levantou a mão e gesticulou para que eu me aproximasse. — Sente-se, menina. Você precisa comer — disse, olhando-me com cuidado, como se se preocupasse com minha fragilidade aparente. — Está muito magrinha.

Sentei-me, ainda tímida, e comecei a pegar um pouco de pão, sentindo o aroma da manteiga fresca e do café forte. O som dos empregados conversando se misturava com o tilintar de talheres e o ranger da madeira da mesa.

— Meus ex-patrões lá do sul tinham pessoas da cor dela — murmurou uma das mulheres, quase sem perceber que eu estava ali. — Até mais escuras…

— Mas olhem, os traços dela são finos. Deve ser mestiça — outra comentou, franzindo levemente a testa.

A cozinheira gordinha resmungou, batendo com a colher na mesa. — Deixem a menina em paz! Ela é só uma criança. — Sua voz firme fez algumas cabeças se voltarem para ela, e o ambiente se acalmou um pouco.

O senhor Witmore ergueu levemente a bengala e falou com firmeza: — Comam rápido, por favor. Não é hora de fofoca. Depois que terminarem, explicarei as funções de cada um nesta casa.

Todos começaram a comer mais depressa. Eu engolia cada pedaço tentando me concentrar na comida, mas a sensação de ser observada permanecia. Cada comentário, cada cochicho, parecia lembrar que eu era diferente.

Quando terminei, o senhor Witmore aproximou-se novamente.

— Senhorita Honora, agora que todos terminaram, vamos às suas funções. Hoje você ficará responsável pelos quartos. Os demais empregados têm suas tarefas distribuídas de acordo com a experiência e especialidade de cada um. — Ele apoiou a mão na bengala, olhando cada um de nós com atenção, e continuei a ouvir, absorvendo cada detalhe, cada expectativa silenciosa daquela casa que agora precisava ser meu mundo.

— Muito bem — disse ele, com a voz grave, mas serena. — Antes de começarmos, vou apresentar cada um de vocês e designar suas funções. Alguns de vocês já estão há anos na casa e conhecem bem a rotina; outros são recentes, contratados para ajudar após o recente matrimônio do Senhor Alistair, e será importante que aprendam rápido.

Ele se voltou para a menina que eu vira na noite anterior, segurando os lençóis.

— Esta é a senhorita Clarissa. Tem dezesseis anos e, por enquanto, ficará ajudando nas tarefas gerais do andar de baixo.

A menina que eu conheci na noite anterior, e que agora eu sabia que se chamava Clarissa, deu um sorriso tímido, e um passo pra trás enquanto o mordomo acabava de dar instruções.

— A senhorita Marta — continuou o senhor Witmore, voltando-se para a cozinheira gordinha — ficará responsável pela cozinha e pela preparação das refeições da casa, seguindo as ordens de Lady Eleonor para cada prato. Ela organizará tudo para que os senhores da casa tenham suas refeições pontuais e adequadas.

Marta acenou com a cabeça, firme, quase um gesto automático de quem conhecia a rotina há anos.

— Thomas — prosseguiu o mordomo, indicando um rapaz magricela um pouco mais velho que nós, de cabelos e barbicha ruiva. — cuidará das áreas externas e da manutenção. Os jardins, estábulos e corredores serão sua responsabilidade. Além de ser cocheiro quando precisar.

— Senhora Beatriz — disse Witmore, voltando-se para uma jovem de aparência robusta e gestos decididos — você agora estará encarregada da arrumação das salas comuns e do auxílio na copa.

Ela franziu ligeiramente o cenho, como se hesitasse, e murmurou:

— Mas os quartos…

O mordomo levantou a mão, pausando o protesto silencioso.

— Não mais, Beatriz. Lady Eleonor decidiu que os quartos ficarão sob responsabilidade da senhorita Honora. Sua função principal será manter os aposentos limpos, organizados e prontos para inspeção ou visita. A senhora Clarissa auxiliará quando necessário, mas a supervisão será da senhorita Honora.

Beatriz bufou baixo, visivelmente contrariada, mas não ousou discutir mais.

— O senhor Peter — continuou Witmore, apontando para um rapaz mais jovem, cabelos claros e olhos atentos — ficará encarregado do serviço de despensa e transporte de mantimentos.

— A senhorita Honora — disse finalmente, pousando a bengala sobre a mesa por um instante, olhando-me diretamente — ficará responsável pelos quartos. Isto inclui limpar, organizar e manter tudo conforme a ordem da Lady Eleonor. Algumas tarefas, como roupas de cama e detalhes de higiene, poderão ser divididas com Clarissa, mas você terá autoridade e supervisão.

Senti meu coração bater mais forte, misto de orgulho e nervosismo. Era minha primeira responsabilidade oficial na casa, e todos olhavam para mim de maneira curiosa, avaliando minha reação.

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