Mundo de ficçãoIniciar sessãoMinha mãe, porém, não deixou o silêncio pesar. Endireitou os ombros e, com a mesma calma com que elogiaria um vaso de porcelana, declarou:
— Honora é mansa, educada. Não trará problemas. Aos oito anos já sabia lavar, passar e cozinhar. É útil, e sabe qual é o seu lugar. Cada palavra foi dita como quem descreve uma peça de mobília. Eu não era filha, não era sangue, não era nada além de uma utilidade. William riu baixo. Uma risada curta, mal contida. Seus olhos voltaram a me analisar de cima a baixo, e quando falou, a crueldade veio tingida de ironia: — Um ótimo animal de estimação, então. Meu estômago se contraiu. O sangue latejou nos ouvidos, e por um instante desejei desaparecer ali mesmo. Os empregados trocaram olhares discretos, alguns desviaram a vista como se não quisessem se envolver. Eleanor, no entanto, riu suavemente, como se fosse apenas uma brincadeira juvenil. — William… — disse, em tom repreensivo, mas sem verdadeira reprovação. — Não diga isso. Mas ela não desmentiu. Não disse que eu era mais. Apenas deixou a ofensa pairar no ar, como se fosse natural. Alistair não riu. Apenas lançou ao irmão um olhar firme, de advertência, que William ignorou com um sorriso atrevido. Eu respirei fundo, tentando manter a compostura. Sentia a pele arder, a vergonha misturada ao ódio silencioso. Mas aprendi cedo que era mais seguro ficar calada. Minha voz não teria peso naquele lugar. — Entrem — disse Alistair, por fim, gesticulando em direção à porta aberta da mansão. — A casa é de vocês agora. “De vocês.” A frase ecoou como uma ironia cruel dentro de mim. A casa seria deles, de Eleanor, de Alistair, de William. Eu apenas existiria nos cantos, invisível, obediente, prestando serviços. Uma presença tolerada, não desejada. Atravessei o limiar da mansão com o coração pesado. O chão de mármore brilhava sob meus pés gastos, e cada quadro dourado, cada escultura fria, parecia me olhar com a mesma indiferença com que eles me olhavam. Eu estava dentro, mas jamais faria parte. E ainda assim, algo dentro de mim murmurava em silêncio: eu observaria tudo. Eu aprenderia as regras. E, mesmo que ninguém visse, eu seria mais do que a sombra que eles esperavam. Fui levada por um dos empregados mais velhos através de corredores longos e frios. O mármore brilhava até mesmo nos cantos menos iluminados, e meus passos pequenos ecoavam como se denunciassem minha presença em cada canto daquela casa enorme. O homem não disse quase nada, apenas fez sinal para que eu o seguisse, e eu obedeci em silêncio. Eleanor desaparecera para algum lugar mais nobre, onde meu pé jamais pisaria sem ser chamado. Descemos uma escadaria estreita, onde o brilho dos corredores principais deu lugar ao cheiro de pedra úmida e madeira encerada. O som era outro ali, o burburinho distante de vozes, o bater de panelas, o arrastar de baldes. Era o coração da mansão, mas não aquele que aparecia nas recepções. — Aqui — disse o homem por fim, apontando para uma porta simples de madeira. Antes que eu pudesse entrar, uma garota surgiu de dentro de outro quarto, carregando lençóis dobrados. Ela tinha a pele clara manchada de sol, os cabelos castanhos presos em trança mal feita, e os olhos vivos que se demoraram em mim. — Então é você — disse, sem cerimônia, apoiando os lençóis no quadril. — A menina de cor que Lady Eleanor trouxe. Eu engoli em seco, sem saber se deveria responder ou apenas abaixar a cabeça. Antes que eu me decidisse, ela arqueou a sobrancelha, curiosa. — Estranho darem um quarto só pra você. A criadagem costuma dividir — comentou, apontando para as portas ao lado. — Eu durmo com mais três. Senti minhas mãos tremerem um pouco contra o vestido. Eu não sabia se deveria agradecer pelo quarto separado ou sentir-me ainda mais marcada por isso. Separada, isolada, como se minha diferença fosse tão grande que até a convivência com os outros empregados precisasse de barreira. — Quantos anos você tem? — perguntou a garota, inclinando a cabeça como quem me avaliava. — quinze — respondi, a voz mais baixa do que eu queria. Ela abriu um sorriso pequeno, quase divertido. — Tenho dezesseis. — E, depois de uma pausa, completou: — Parece mais nova. Eu dei um pequeno sorriso tímido, e ela não falou mais nada, apenas ajeitou os lençóis no braço e saiu andando pelo corredor, como se eu não fosse nada além de um detalhe curioso em sua rotina. Fiquei ali, parada diante da porta, sem saber se devia entrar de imediato. O empregado que me trouxera já havia sumido, e o corredor agora estava vazio, exceto pelo som distante das vozes e dos passos apressados. Respirei fundo, empurrei a porta e entrei. O quarto era simples, muito menor do que eu imaginara ao olhar a grandeza da mansão. Um catre de madeira com colchão fino, uma pequena mesa com espelho de apoio com jarra e bacia para água, um armário estreito de ferro já gasto pelo tempo. Não havia janelas largas, apenas uma fresta alta que deixava entrar um fio de luz. Fechei a porta devagar e sentei-me no catre. A madeira rangeu sob meu peso, e o colchão era duro, mas limpo. Passei os dedos pelo tecido áspero da colcha, tentando me acostumar à ideia de que aquele seria meu espaço. Meu espaço. Mas não meu lar. Deitei de lado, encarando a parede de pedra que parecia fria até no olhar. A mente, no entanto, não ficou ali comigo. Foi direto para minha mãe, Lady Eleanor. Ou oque restava dela nesse papel, agora ela estava em algum salão iluminado, ao lado de Lorde Alistair, a quem chamava de marido. Eu nem sequer fora permitida a assistir ao casamento dias atrás. Nem flores, nem música, nem promessas. Apenas um anúncio seco: Eleanor iria se casar, e a partir de agora viveríamos sob proteção de Redcliff. Ela não disse se estava feliz. Talvez nunca estivesse. Mas, ainda assim, a ideia de casamento parecia um prêmio. O que significava para ela, eu não sabia. Para mim, significava apenas mais distância. Lembrei-me da última vez que tentei perguntar, com a inocência que restava em mim e ela me respondeu: “O senhor Alistair espera que eu possa lhe dar filhos em breve”, ela respondera, sem sequer olhar nos meus olhos. Filhos. Meu peito apertou, e engoli a seco o nó que se formava na garganta. Se ela tivesse filhos dele, eu seria ainda menos. Uma sombra da sombra. Um erro que caminhava pelos corredores escondidos da mansão. Levantei-me e caminhei até a bacia de água. Toquei a superfície gelada, e a pele dos meus dedos ardeu. Observei meu reflexo trêmulo na água: Meus cachos crespos teimavam em sair do lenço que tentei amarrar com tanto esforço. Minha pele era de um tom que ninguém ali tinha. Nem tão escura quanto a dos escravos, nem tão clara quanto a dela e dos outros nobres. Um meio-termo que parecia gritar minha diferença a cada olhar.






