Mundo ficciónIniciar sesión— Os demais empregados — concluiu Witmore, gesticulando levemente — seguirão com suas funções habituais. Todos devem trabalhar com atenção, rapidez e discrição. É hora de nos distribuirmos.
Enquanto ele caminhava pela cozinha, dando pequenas instruções complementares a cada um, senti o peso do novo papel que me fora conferido. Os quartos seriam meus, e com eles, a primeira oportunidade de mostrar que eu poderia existir, ainda que pequena, naquele mundo enorme e exigente. O senhor Witmore apoiou-se levemente na bengala e começou a conduzir-me pelo corredor leste da mansão. — Aqui, senhorita Honora, localizam-se os quartos principais da família. No corredor leste temos os aposentos de Lady Eleonor e do senhor Alistair; no corredor sul, os quartos dos jovens da casa. Cada quarto possui seu propósito, mas a rotina de manutenção permanece a mesma: limpeza, arrumação e cuidado com cada detalhe. Ele apontava discretamente para cada porta, enumerando nomes e funções sem que eu precisasse abrir cada porta naquele momento. Alguns quartos, explicou, eram raramente usados, enquanto outros precisavam de atenção diária. Os corredores eram amplos, iluminados por janelas altas que deixavam entrar a luz da manhã, refletindo no piso de madeira polida. O ar estava impregnado de uma mistura de madeira encerada e um leve perfume residual de lavanda e pó de talco. Comecei pelo quarto de minha mãe. Ao abrir a porta, senti o cheiro familiar que me trouxe lembranças inesperadas, quase esquecidas. A cama ainda estava levemente desfeita, como se tivesse sido abandonada às pressas. Meus dedos tocaram o lençol, e por um instante imaginei se minha mãe teria outros filhos, e se eu seria finalmente esquecida. Respirei fundo e comecei a ajeitar o quarto, alinhando lençóis, dobrando mantas e arrumando pequenos objetos sobre a cômoda. A luz do dia refletia nas peças de madeira, dando uma sensação de calma temporária. Quando terminei, segui para o quarto do jovem senhor William. Ao abrir a porta, percebi imediatamente a diferença: o espaço tinha a energia de um rapaz em crescimento, bagunçado, mas com sinais de ordem meticulosa em alguns detalhes, livros empilhados, roupas dobradas com cuidado, pequenas marcas de uma rotina ainda em formação. Comecei a organizar o quarto, ajeitando a cama, colocando os objetos nos lugares certos, ajustando a cortina que se movia com a brisa que entrava pela janela. Foi nesse instante, quando ainda estava em silêncio, concentrada na tarefa, que ouvi a porta se abrir atrás de mim. Ele entrou devagar, os passos leves ressoando no quarto. Quando nossos olhares se encontraram, senti a intensidade de sua atenção: olhos azuis claros, examinando-me como se eu fosse uma peça rara, uma curiosidade viva. Alto, magro, com uma beleza quase irreal de quem ainda não era um completo homem, ele caminhava com segurança, cada gesto calculado, o corpo tenso, como se o mundo fosse feito apenas para medir sua presença. — Vejo que está cuidando dos quartos… com bastante zelo, — disse ele, a voz firme, carregada de ironia. — Curioso, não é? Pessoas da sua cor normalmente não recebem regalias aqui. Não de Alistair. Meu coração disparou, e tentei manter a postura, mas cada palavra parecia pesar no ar, lembrando-me de que eu era diferente, deslocada, um elemento que ele mal aceitava existir. Ele deu um passo mais perto, inclinando-se levemente, o olhar demorando-se nas tranças que eu havia feito naquela manhã. Com um gesto quase infantil, puxou delicadamente um fio entre os dedos. — Hm… a textura é… diferente, — murmurou, como se estudasse uma peça peculiar. — E essa cor de pele… tão… rara para este ambiente. Eu travei, a respiração presa. Ele sorriu de leve, mas não havia calor ali, só um fascínio frio, clínico, como se eu fosse algo a ser medido, catalogado, algo que não deveria desfrutar das regalias que, segundo ele, eram naturais para a casa. — Meu irmão vê o mundo de um jeito… — continuou, o sarcasmo perceptível, sem necessidade de elevar a voz. — Ele acha certo que algumas pessoas… bem, que certas pessoas existam apenas para servir. E você? Recebendo quarto privilegiado, cuidado especial… deve achar isso natural, não é? A Lady Eleonor fez um pedido único a ele: que você ficasse em Redcliff, não mandada para as colinas no sul. Com gente igual a você. O silêncio caiu pesado entre nós. Ele deu mais um passo, cruzou os braços, e me estudou com um olhar que misturava julgamento e curiosidade. — Pode acreditar, — disse, quase em sussurro, mas carregado de ameaça velada — viver aqui em Redcliff fará com que as colinas pareçam um paraíso… para você. Eu estava tremendo inteira, as palmas suadas apertando o vestido. Porém, criei coragem e perguntei, a voz quase falhando: — O que você quer dizer com isso? Você vai me fazer mal? Ele deu um leve sorriso, frio e calculado, mas seus olhos azuis mantinham uma atenção intensa, quase estudando-me. — Não é a mim que deve temer — disse, a voz baixa, firme, carregada de uma autoridade que não precisava se impor com gritos. — Mas devo alertá-la: há algo que corre no sangue dos Redcliff. Amamos colecionar o que é diferente, coisas que podemos observar, entender… até manipular. E às vezes… o prazer está em saber que podemos destruir. Ele deu um passo mais perto, a presença dele preenchendo o quarto, mas sem tocar-me. A ambiguidade em seus gestos era irritante e fascinante ao mesmo tempo. Não havia malícia explícita, mas também não havia gentileza. Eles era só mais um menino mimado, acostumado a ter controle, a medir, a observar, e talvez decidir o destino de quem cruzasse seu caminho. — É… a maldição dos Redcliff — concluiu, com a voz baixa, quase um sussurro, mas suficiente para fazer meu corpo gelar. Quando William saiu do quarto, senti meu coração disparar, os pensamentos embaralhados. Eu não sabia se a verdadeira ameaça estava nele ou no irmão. Minha mente também se voltou para minha mãe… e se ela não tivesse ideia do que acontecia aqui? O senhor Alistair era uma ameaça? Respirando fundo, saí do quarto e dei de cara com Clarissa. — Clarissa — disse, tentando parecer calma. — Você estava… aqui? — Sim — respondeu a menina, com um sorriso tímido. — Eu ouvi parte da conversa do William com você. — Ele me assustou — confessei, baixando o olhar. — É, ele é meio assustador mesmo — disse Clarissa, franzindo a testa, mas logo deu de ombros. — O senhor William é… complicado. Ele é muito inteligente, todo mundo sabe disso, sempre tem uma resposta rápida pra tudo. E também é bonito, isso ninguém pode negar. Tem umas moças da vila que suspiram quando o veem. Dizem que ele vai ser ainda mais bonito que o irmão. Mas William não parece estar tão interessado nelas como é fixado pela guerra. Ela fez uma careta, como quem repetia algo que já ouvira várias vezes. — Mas ele também é vaidoso. Gosta de mostrar que é mais esperto do que todo mundo, e às vezes pode ser cruel, como se tivesse prazer em ver os outros desconfortáveis. Acho que é o jeito dele… brincar, sabe? Clarissa baixou um pouco a voz, inclinando-se para perto. — Às vezes, ele faz algumas meninas gritarem. — Gritarem? — perguntei, surpresa. — Sim — respondeu, olhando para os lados como se tivesse medo de ser ouvida. — À noite, eu ouço algumas meninas nos quartos… algumas ele traz da vila, outras… — ela desviou o olhar, desconfiada, como se estivesse me revelando algo que não deveria. — São daqui. Outro dia, ouvi a Beatriz em seu quarto e… bem, gritando. — Ele estava machucando ela? — perguntei, assustada, sentindo um frio subir pela espinha. Clarissa corou, mordendo o lábio antes de balançar a cabeça.






