O relógio antigo da sala marcava nove e meia da noite. O ponteiro fazia um som seco, repetitivo, que parecia ecoar pela casa inteira.
Helena Duarte estava sentada diante da mesa de jantar, com uma xícara de chá ainda quente entre as mãos. Observava o vapor subir e desaparecer no ar, como se fosse um reflexo perfeito do que sentia dentro de si: aquele amor inquestionável que um dia sentira agora se dissipava e dava lugar a uma fria decepção.
A casa, espaçosa e moderna, era fruto de anos de decisões conjuntas, mas refletia mais os gostos de Cássio do que os dela. Helena havia escolhido móveis, cores de paredes e quadros, mas sempre buscando agradar a ele — os tons neutros, o design minimalista, cada peça cuidadosamente alinhada ao estilo que ele apreciava. Tudo tinha seu toque, sim, mas não sua essência. Era um espaço impecável e elegante que impressionava os outros…, mas frio, distante, que jamais conseguira fazê-la se sentir verdadeiramente em casa.
Apenas aquele relógio, aquele velho relógio, cujo ritmo parecia ironicamente seguir as batidas do seu coração no silêncio séptico da casa, carregava um pouco da alma dela. A madeira escura, levemente desgastada pelo tempo, exibia delicados entalhes de arabescos que lembravam mãos entrelaçadas, e o pêndulo balançava com uma cadência hipnotizante, como se suspendesse o tempo a cada vaivém.
O barulho da fechadura eletrônica interrompeu o silêncio. Cássio entrou, sorridente, terno impecável, o cheiro de perfume caro anunciando sua presença. Ele se aproximou e lhe deu um beijo rápido na testa, distraído.
— Amor, você não imagina como foi puxado hoje. — Largou a pasta sobre o sofá e afrouxou a gravata. — Mas o contrato saiu, finalmente.
Helena sorriu, o brilho ausente nos olhos denunciava que não havia alegria ali, apenas uma máscara polida.
— Que bom, Cássio. Fico feliz por você.Ele não percebeu a falta de entusiasmo, ocupado demais em mexer no celular. Helena observou de canto de olho enquanto ele digitava, os dedos rápidos demais, os olhos iluminados não pelo reencontro com ela, mas pela tela. A cada segundo, o coração dela apertava.
Fazia meses que via os sinais. Mudanças sutis: o perfume diferente nas camisas, as desculpas de reuniões que se estendiam até altas horas, as noites fora de casa, o modo como ele parecia estar sempre em outro lugar, mesmo presente.
Era como se ela não estivesse ali, não mais. Como se fosse só mais um dos itens decorativos da casa, da vida dele.
Mas ela não queria acreditar. Não podia. Cada célula do seu corpo teimava em buscar explicações que fizessem sentido, qualquer justificativa que lhe permitisse continuar vivendo naquele mundo cuidadosamente montado — um mundo que ela havia moldado para ele e para a ilusão do amor que julgava existir.
Ela tentava se convencer de que era apenas cansaço, excesso de trabalho, estresse acumulado. Lembrava-se das vezes em que ele chegava tarde com uma desculpa plausível, e seu coração, ainda enganado, se acalmava temporariamente. E cada vez que ele sorria, tocava sua mão ou dizia algo gentil, ela sentia que ainda podia existir aquele homem que conhecera, aquele que jurara amá-la.
...
Mas na noite anterior, a verdade caiu sobre ela sem pedir licença. Enquanto ele se distraía no banho, o celular vibrou sobre a mesa de cabeceira. Helena nunca foi de bisbilhotar, mas seus olhos pousaram na tela iluminada e o mundo desabou: “Silvia: Saudade já, meu amor. Ansiosa pra te ver amanhã.”
As palavras eram punhais. Helena respirou fundo, tentando manter o controle. Mas havia algo estranho, uma sensação de estar despida, não apenas fisicamente. A mente esvaziou-se, os pensamentos se perderam, e uma estranha lentidão tomou conta de tudo. O corpo continuava ali, mas parecia apenas uma casca oca. Como se o choque tivesse arrancado a tinta de uma tela, deixando apenas a superfície nua.
Não chorou. Não gritou. Não quebrou nada. Tudo o que restava era o silêncio pesado, denso, carregado da ausência de tudo o que acreditara existir.
O chuveiro sendo desligado tirou-a do torpor. Ela se moveu quase sem vontade, como se o corpo tivesse esquecido a própria autonomia, e foi para seu lado da cama. Deitou-se de costas, os olhos fixos no teto, tentando encontrar em suas lembranças qual foi o momento da fissura, ou o porquê dela. Quando e como tudo desandou. E, inevitavelmente, sua mente a levava de volta ao tempo em que tudo começou.
Ela lembrava-se de Cássio na época da faculdade — o sorriso fácil, capaz de iluminar qualquer sala, o olhar intenso de olhos castanhos que pareciam avaliar o mundo como um tabuleiro de xadrez, e o queixo firme que transmitia uma confiança quase arrogante. Seus cabelos escuros, sempre impecavelmente penteados, e o porte ereto davam-lhe uma presença impossível de ignorar. Ele era o tipo de homem que parecia dominar o próprio destino, enquanto ela vivia mergulhada em cores e pincéis, com respingos de tinta nos dedos e ideias demais borbulhando na cabeça.
Conheceram-se em uma exposição estudantil, quando Cássio, curioso, parou diante de um de seus quadros.
— Você pinta sentimentos? — perguntou ele, observando as formas abstratas que pareciam pulsar em tons de azul.
— Pinto o que não consigo dizer. — respondeu ela timidamente, sorrindo sem saber que aquele seria o começo de uma história que mudaria tudo.
Nos meses seguintes, ele passou a frequentar o ateliê improvisado onde Helena criava. Levava café, elogios e promessas. Dizia que ela era o tipo de mulher que merecia o mundo — e, encantada, ela acreditou.
Cássio parecia genuinamente interessado por sua arte, por sua sensibilidade. E, quando a pediu em casamento, Helena sentiu que o universo finalmente lhe retribuía a intensidade do que ela sempre ofereceu: amor sincero.
Lembrava-se do dia em que fechou o ateliê, guardando as telas empoeiradas. Cássio dizia que logo teriam uma casa maior, um estúdio digno, e que aquela seria apenas uma “pausa temporária”.
Mas o tempo passou, e o espaço prometido nunca veio. A cada nova preocupação, cada negócio de Cássio, cada jantar em que ele a pedia para “ser paciente”, Helena se afastava mais das cores que antes a definiam.
Quando Cássio sonhava em abrir sua própria empresa de design de móveis, foi Helena quem intercedeu junto aos pais, conseguindo o capital inicial que tornaria aquele projeto possível. Se não fosse isso, talvez Cássio jamais teria dado o primeiro passo.
Era Helena quem passava noites acordada ao lado dele, desenhando rascunhos e testando combinações de cores.
— Você tem o olhar que eu não tenho — ele dizia, observando-a transformar simples peças em obras elegantes.Helena sorria, acreditando que faziam tudo juntos. Criou o logotipo da empresa, sugeriu o nome “Studio Cassiani” e até idealizou o showroom que, meses depois, se tornaria referência para todo o setor de designer e decoração.
O sucesso veio rápido, mas junto dele, a distância. Passaram a frequentar eventos, jantares de negócios, e Cássio passou a apresentar as criações como suas.
— Você não entende desse mundo, amor. É melhor deixar que eu fale. — Dizia, com um tom gentil que escondia o início do desdém.Helena aceitava em silêncio, sem perceber que estava desaparecendo por trás do brilho que ela mesma havia criado.
Com o crescimento da empresa, Cássio começou a circular entre arquitetos renomados, investidores e colunistas sociais. Helena, embora fosse a mente por trás, raramente era mencionada.
Ele se acostumou a ser o centro das atenções, e ela, a sombra discreta. Por fim, nem sua presença era mais necessária.
— Helena, não precisa ir nesse evento. É só coisa técnica. — Dizia, ajustando a gravata diante do espelho.Ela ficava em casa, esboçando novas peças e assistindo pela televisão às reportagens que exaltavam o “visionário Cássio Amaral”, sem uma única menção à mulher que esboçara cada linha daquele império.
A rotina do casal começou a mudar. Helena ainda tentava manter a casa acolhedora, os jantares tranquilos, mas Cássio vivia ausente, envolvido em viagens e reuniões. Quando estava presente, trazia consigo um ar de superioridade — o peso de quem acredita que o sucesso é conquista exclusiva.
Ela ainda o admirava, mas começava a sentir um incômodo sutil, uma distância que o tempo não justificava.Agora, anos depois, quando encarava seu reflexo no espelho, ela via o resultado de todas as concessões feitas em nome de um amor que se tornou unilateral.
E vazia, naquela mesma noite, jogou a aliança que estava no dedo no lixo e tomou sua decisão.
> “Não vou implorar, não vou disputar. Vou libertar a mim mesma.”...
Quando Cássio finalmente desviou o olhar do celular e voltou a encará-la, ela tentava manter a mesma calma ensaiada.
— Quer jantar? — perguntou ela, como se nada tivesse acontecido.
— Não, já comi com o pessoal do trabalho. — respondeu, distraído, sem notar o tremor leve na voz dela.
Helena baixou os olhos para o chá, escondendo o fogo que ardia em seu peito. Ele não saberia, não naquele momento. Ela seria paciente, tão paciente quanto sempre fora, mas dessa vez para escrever seu próprio destino.
Naquela noite, ao se deitar ao lado dele, fingiu dormir cedo. O coração batia acelerado, mas seus olhos novamente fitavam o teto escuro. Já não era a mesma mulher que repousava naquela cama. A decisão havia florescido em silêncio: ela iria embora.
E, quando fosse, Cássio não veria apenas um travesseiro vazio. Veria ruir todo o castelo que acreditava ter erguido sozinho.