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Capítulo 2 - A tela rasgada

Na manhã seguinte, o telefone de Cássio vibrou sobre o balcão da cozinha, interrompendo o silêncio da casa. Helena, já vestida, mexia distraidamente a colher no café, enquanto ele se apressava para sair, ajustando a gravata diante do espelho.

— Quem era? — perguntou ela, sem tirar os olhos do líquido escuro e quente à sua frente, a voz calma escondendo a curiosidade.

— O pessoal do escritório. Temos uma reunião cedo — respondeu ele rapidamente, sem parar de mexer na agenda do celular, o tom carregado de pressa e impaciência.

Ele olhou para ela por um instante, o olhar distante, e continuou:

— Falando nisso, preciso do projeto da nova coleção. O evento de cinco anos da empresa está chegando, e precisamos ter os protótipos prontos para o showroom. Já está pronto?

Helena apenas assentiu, sem uma palavra. Seus dedos empurraram levemente uma pasta de couro azul que repousava sobre a bancada, com o logotipo do Studio Cassiani, em baixo relevo dourado, refletindo a luz que passava pela Janela.

Ele pegou a pasta com um gesto apressado e saiu, o clique seco da porta ao se fechar cortando o ar como um lembrete silencioso do fim da conversa.

Nenhum "obrigado" escapou de seus lábios, nenhum sinal de reconhecimento. Nada além do eco de passos que se afastavam, deixando Helena diante do silêncio pesado, como se todo o esforço e dedicação depositados naquela pasta tivessem evaporado no ar.

Nos últimos seis meses, Helena se perdeu entre lápis, papéis e esquadros, inclinada sobre a mesa do escritório como se cada ferramenta fosse uma extensão de suas próprias mãos.

Os traços se acumulavam, se sobrepunham, se transformavam — uma coreografia silenciosa que apenas ela compreendia.

Era a décima coleção de móveis que criava para a empresa, mas havia algo de diferente nesta: ela seria lançada no quinto aniversário da Studio Cassiani, no mesmo dia em que completaria cinco anos de casamento. Um marco duplo, cheio de lembranças e contrastes.

Enquanto o esboço de cada novo móvel ganhava forma no papel, Helena pausava. Olhava de cima, inclinava a cabeça, ajustava uma linha quase imperceptível, uma sombra sutil — e, de repente, cada peça parecia respirar.

Mas não se tratava apenas de desenhos. Cada página carregava o estudo dos materiais, a definição das cores, o detalhamento das especificações técnicas, o planejamento de cada etapa do processo de fabricação.

Era a fusão entre arte e engenharia, entre criatividade e precisão.

Foram dias e noites entre xícaras de café e páginas amassadas que quase encontravam o caminho do lixo. Mas enfim, a coleção estava pronta: a Coleção Prisma.

O nome não era por acaso. Cada móvel funcionava como um prisma: uma mesma forma podia refletir diferentes nuances, mostrar múltiplas facetas dependendo do ângulo, da luz, da percepção de quem olhasse. Assim como ela própria, cada peça revelava camadas de dedicação, sensibilidade e força — pequenas cores transformando-se em algo maior, mais vibrante, mais vivo.

E para que?

Qual era o sentido de todo aquele esforço se, no final, ela não recebia nem mesmo um “obrigado”? Nenhum reconhecimento, nenhum gesto que mostrasse que todo o seu empenho significava algo para ele.

Helena riu, um riso seco, carregado de ironia e amargura. Havia dado tudo de si: cada hora, cada minuto, cada mísera grama de dedicação, cada ideia cuidadosamente moldada, cada traço que tirara do papel e tornara real. E todo o amor que um dia acreditou ter valor, que achou que seria suficiente para preencher qualquer vazio, agora parecia se dissipar sem deixar vestígios.

Nos dias que seguiram, ela o observava de longe, com uma serenidade nova, quase assustadora. O mesmo homem que antes dominava seus pensamentos agora parecia uma figura distante, recortada em papel, sem profundidade. Ele falava sobre metas, contratos, projeções, e ela percebia que nenhuma daquelas palavras continha vida.

Helena estava no escritório de casa, organizando alguns desenhos antigos, quando o noticiário da TV mencionou o Studio Cassiani em uma reportagem sobre tendências de design.

Na tela, Cássio aparecia ao lado de uma mulher jovem, de cabelos lisos e loiros soltos sobre os ombros, olhos castanhos vivos e expressivos, e um sorriso perfeitamente calculado. O vestido vermelho ajustava-se com elegância à sua silhueta esguia, e cada gesto parecia pensado para impressionar.

— “A nova gerente de marketing, Sílvia Moretti, tem sido peça-chave na expansão internacional da marca” — dizia o repórter.

Helena largou os papeis. O mundo pareceu girar por um instante.

Ali estava, diante das câmeras, a mulher por trás das mensagens. E Cássio, ao lado dela, irradiava orgulho. Não havia culpa em seu olhar, apenas vaidade.

Respirou fundo, desviando o olhar, tentando não deixar que a raiva ou a mágoa tomassem conta. Mas, mesmo assim, não pôde deixar de reparar nos detalhes: a confiança com que Silvia se posicionava ao lado de Cássio, o leve inclinar da cabeça enquanto conversava com ele, o brilho calculado nos olhos — tudo tão planejado, tão estudado.

Helena percebeu que, por mais que tentasse, nada poderia apagar aquele retrato de uma intimidade que ela não tinha mais.

Mas ela não chorou. Já havia derramado lágrimas demais durante aqueles cinco anos — cada briga, cada cobrança, cada tentativa de receber carinho e atenção que sempre terminava em culpa e reprovação.

Antes, seu coração era um mar agitado, revolto pelas ondas das decepções e das falsas promessas. Agora, depois de ler aquela mensagem, tudo parecia seco, como se o oceano interno tivesse sido drenado sem aviso, deixando apenas um leito vazio, rachado e silencioso.

O furor, a dor, a esperança — tudo evaporara. Restava apenas ela, sólida e contida, como uma concha abandonada na areia, olhando para o mundo com olhos claros e resolutos, finalmente despida da ilusão de que ainda havia algo ali para salvar.

Abriu a pasta onde guardava seus antigos esboços da faculdade e os espalhou sobre a mesa. As linhas, os traços, as cores — tudo aquilo que fora deixado de lado em nome de um amor — pareciam chamá-la de volta.

No fim da tarde, quando saia do banho, o celular vibrou sobre a bancada da pia. Uma notificação nova, de um número desconhecido.

Helena pegou o aparelho — e o sangue gelou.

“Você devia estar orgulhosa. Seu marido falou tanto de você hoje.”

Ela leu a mensagem três vezes antes de perceber o tom: não havia admiração ali, mas deboche.

Respirou fundo, bloqueou o número e deixou o celular sobre a mesa.

Mas não adiantou. As mensagens voltaram, de outro número, acompanhadas de uma foto.

“Cássio sempre fala que você é calma demais. Acho que ele precisava de um pouco mais de emoção, sabe?”

“Ah! Adorei o colar que ele disse que você não usava mais. Ficou lindo em mim.”

Quando pensava ter suportado tudo, aquela foto lhe gelou o sangue.

Fechou as mãos com tanta força que as unhas machucaram a palma.

Sílvia posava diante do espelho, sorrindo, com um colar delicado de pingente dourado em forma de coração.

Helena sentiu o estômago revirar. Conhecia aquele colar — era o mesmo que herdara de sua avó, o mesmo que Cássio insistira em guardar “para não estragar” anos atrás, prometendo mandar restaurar a corrente.

Por um instante, tudo pareceu girar.

Lembrou-se do dia em que a avó lhe dera aquele presente, ainda adolescente:

“Use quando precisar se lembrar de quem você é, minha menina.”

As palavras ecoaram na mente de Helena como um sussurro antigo, dolorosamente vivo.

Ela levou a mão ao pescoço, como se ainda o usasse, e sentiu um vazio imenso — não só pela perda do colar, mas pelo significado arrancado junto dele.

Cássio não apenas traíra sua confiança; havia profanado um pedaço da sua história.

O colar, antes símbolo de amor e memória, agora pendia no pescoço da mulher que tomara seu lugar.

E, naquele instante, Helena soube que nada do que ele dissesse poderia apagar o que via diante de si.

Helena não respondeu. Não iria se rebaixar ao jogo de uma mulher que confundia poder com provocação.

Mas cada palavra era uma agulha fina perfurando a serenidade que ela tanto tentava manter.

Cássio escolheu aquele momento para irromper no banheiro, e seu susto foi imediato ao ver Helena parada ali, o olhar vítreo, feroz e poderoso, como se pudesse atravessar qualquer mentira que ele ousasse pronunciar.

Por um instante, o ar parecia pesado demais, carregado do silêncio que crescia entre eles, cada segundo mais torturante que o anterior.

— Helena… — começou ele, a voz trêmula, tentando encontrar firmeza, mas falhando. — Eu…

— Já chegou? — perguntou, a voz leve, quase ensaiada, enquanto engolia a amargura que queimava a garganta.

Ela ergueu o queixo, imóvel, cada músculo do corpo tenso, como se tivesse absorvido anos de dor e decepção em um instante.

Deu um passo em direção à porta, desviando do corpo aparentemente congelado dele, e dando-lhe espaço para entrar no banheiro.

— Eu vou sair — disse, com uma calma que queimava como fogo lento, mas em sua mente ela completava “E, Cássio, quando eu sair, não será apenas da sua casa… será de tudo que você achou que poderia controlar em mim.”

Ele fechou a porta atrás dela, e já no quarto ela olhou para o celular dele sobre a cômoda.

Não precisava de senha — ele nunca imaginou que Helena tivesse motivos para duvidar. Bastou deslizar o dedo para a tela acender e as mensagens se abrirem em uma sequência cruel de flertes, promessas e confissões.

“Hoje, quando você olhou pra mim na reunião, tive vontade de te beijar ali mesmo.”

“Você me inspira, meu amor. Nunca senti isso antes.”

Helena leu e releu aquelas palavras, sentindo o peito arder.

Não apenas pela traição — mas pelo eco cruel daquilo que já fora dito a ela.

Em sua mente, a memória veio nítida, como uma pintura antiga:

a primeira noite em que Cássio lhe dissera “você é tudo o que eu sempre quis”, olhando-a nos olhos, com sinceridade que parecia incontestável.

Ela lembrava do toque dele, da forma como segurava suas mãos com delicadeza, das juras de amor que pareciam eternas.

“Eu não vou deixar de te amar nunca, Lena.”

“Você é o melhor que já me aconteceu.”

Agora, esse tipo de palavras estavam ali — vazias, recicladas, dirigidas a outra mulher. A mesma do vestido vermelho.

Helena sentiu a bile subir a garganta, mas não chorou.

Era como se uma parte dela, a mais ingênua e sonhadora, tivesse morrido em silêncio naquela noite.

Com um gesto preciso, começou a fotografar tudo.

Cada conversa, cada declaração, cada promessa repetida.

Não por vingança — mas por justiça.

Cássio havia construído seu império sobre a criatividade dela; agora, ela garantiria que ao menos a verdade também tivesse um registro.

Fechou o aparelho e o recolocou exatamente no mesmo lugar.

Cássio saiu do banho minutos depois, não tão alheio à tempestade que já se formava atrás dos olhos dela.

— Tudo bem, amor? — perguntou ele, enxugando o cabelo.

— Tudo. — respondeu com doçura ensaiada. — Só estava pensando em como o tempo passa rápido.

Ele riu, achando graça na melancolia dela.

— É, passa mesmo. A gente precisa aproveitar as oportunidades.

“As oportunidades de quem?”, pensou Helena.

Mas permaneceu em silêncio. Agora, cada palavra que não dizia era uma peça colocada com cuidado no tabuleiro.

Na manhã seguinte, Cássio desceu as escadas apressado, ainda rindo de algo no celular.

— Não vou tomar café, estou atrasado para um evento com a equipe — disse, ajeitando a gravata e pegando a maleta.

— Com a Sílvia? — perguntou Helena, sem levantar a voz. Ela só queria ouvir qual seria a resposta dele. Tentar entender aquele homem que antes acreditava que conhecia tão bem.

Cássio parou por um instante. O silêncio entre eles foi mais eloquente do que qualquer confissão.

Ele se virou, com aquele mesmo tom ensaiado de quem tenta controlar a narrativa.

— Amor, você está imaginando coisas. Ela é só uma funcionária.

Helena o observou em silêncio. Havia um brilho novo em seus olhos, um tipo de clareza que o desconcertou.

— Não se preocupe, Cássio. Imaginar sempre foi o que eu fiz de melhor.

Ele não soube o que responder. Pegou a chave do carro e saiu sem olhar para trás.

Helena esperou o som da porta desaparecer, como quem aguarda o fim de um eco antigo, e só então pegou o celular.

Abriu a galeria de fotos com as provas e salvou tudo em um pen drive, junto com todos os arquivos de design que ela mesma havia criado e registrado em seu nome.

A arte que um dia ela cedeu por amor agora seria sua proteção.

Cássio ainda acreditava que ela era ingênua, mas Helena já estava vários passos à frente.

A partida não seria impulsiva. Seria calculada, precisa, silenciosa.

E quando ele percebesse, seria tarde demais.

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