Precipitado

A madre Elisa me olhou com uma suavidade que contrastava com sua postura rígida e sua autoridade natural. Senti-me, por um momento, vulnerável sob aquele olhar. Eu poderia tentar argumentar, mas sabia que seria em vão.

— Sim, madre. Estarei lá — respondi com firmeza, tentando esconder a apreensão que me apertava o peito.

A madre Elisa assentiu com um movimento de cabeça, e notei como seus olhos estavam atentos a cada um dos meus gestos, como se estivesse esperando mais do que um simples consentimento.

— Às sete, na entrada lateral — disse ela, de maneira final. — Seja pontual. E lembre-se de sua missão.

E, com isso, ela se afastou, deixando-me com um misto de preocupação e curiosidade. Olhei novamente para o grupo onde o padre estava, como se ele tivesse se tornado, de alguma forma, uma presença maior do que poderia imaginar. Algo parecia estar prestes a acontecer, mas eu não sabia o que era.

Fiquei parada ali, observando o salão, com o zumbido de conversas e risos ao fundo. A noite, que começara com tanta certeza, agora parecia fluir em uma direção desconhecida, como se eu estivesse prestes a ser puxada para um abismo, sem saber se seria capaz de enfrentar o que estava à frente.

A única certeza era de que, no dia seguinte, eu estaria cara a cara com o misterioso Padre Andrei. E algo dentro de mim não sabia se isso me assustava ou me atraía.

**

A luz da manhã escorria pelos vitrais com uma suavidade quase irreal, tingindo o chão de pedra com tons quentes de âmbar e rubi. Eu já estava acordada havia algum tempo, embora ainda não tivesse saído do quarto. Sentia o peso do dia me esmagar com delicadeza — como uma mão gentil demais para ser ignorada.

Penteava o cabelo em frente ao espelho oval, com movimentos lentos, quase hesitantes. Meus fios cacheados escuros estavam presos em uma trança que caía sobre o ombro, ainda úmidos do banho. Eles estavam mais longos, do que em qualquer período da minha vida. Mas tinham quase na altura altura do meu bumbum. Minha pele morena, herança da miscigenação brasileira, contrastava com o branco impecável do hábito que eu vestia. As roupas me cobriam quase por completo, mas nunca consegui me esconder de mim mesma. Sempre soube que não tinha o tipo de corpo que cabia nas expectativas alheias — nem nas roupas feitas sob medida pela minha mãe. Um pouco mais de curvas do que o aceitável, segundo os olhos austeros do meu pai. Um pouco mais de apetite, segundo a balança que eu evitava pisar. Um pouco mais de mim do que deveria.

Fechei os olhos e respirei fundo. Eu não deveria estar pensando nisso agora.

Hoje, eu teria que apresentar a Basílica para um convidado especial. O tal padre romeno que me havia sido apresentado na noite anterior, durante o evento beneficente, ao lado do arcebispo. Padre Andrei Iliescu.

Só de pensar no nome dele, um arrepio desconfortável percorreu minhas costas.

Ainda não sabia ao certo o que me incomodava tanto. Não era só a beleza — embora, se eu for sincera, ela fosse difícil de ignorar. Era algo na postura dele. No modo como caminhava, como se carregasse uma presença que não combinava com os votos de castidade. Seus olhos cinzentos tinham algo de indecifrável, como se escondessem mais do que mostrassem. Como se vissem mais do que deveriam.

Tentei afastar a lembrança do olhar que ele lançou a mim quando meu pai fez aquele comentário velado sobre o que eu comia. Não foi um olhar de pena. Nem de julgamento. Foi como se ele… analisasse. Como se tivesse absorvido tudo em silêncio, armazenando para depois.

Eu não queria pensar nisso. E muito menos nele.

Peguei o terço que repousava sobre a pequena mesa ao lado da cama e o apertei entre os dedos. Era engraçado como o hábito religioso, tão rotineiro para mim, ganhava uma urgência diferente quando minha mente começava a flertar com pensamentos que não eram dignos de uma serva de Deus.

Desejo é pecado. Eu repeti mentalmente, como um lembrete. O corpo é fraco. O espírito, eterno.

Respirei fundo mais uma vez, ajustei o véu e saí do quarto.

A Basílica estava silenciosa àquela hora. As freiras mais velhas já haviam saído para suas tarefas, e o som de passos ecoava com calma pelos corredores de pedra. O cheiro de incenso ainda pairava no ar desde a última missa, misturado ao aroma discreto de lavanda que algumas irmãs usavam para limpar os bancos de madeira.

Atravessei a nave principal com o coração acelerado. Havia me preparado para esse momento com uma dedicação quase obsessiva. Revisei a história do prédio, decorei datas e detalhes arquitetônicos, e repassei o itinerário dez vezes. Não porque me interessasse particularmente em impressionar Padre Andrei, mas porque, de algum modo, senti que não poderia errar diante dele.

Ao chegar ao pátio interno, avistei Madre Regina conversando com ele.

Ela era uma mulher de estatura baixa, mas com uma autoridade que transbordava pelo modo como segurava as mãos à frente do corpo. Ele, em contraste, parecia uma figura saída de um retrato renascentista — alto, imponente, com os ombros largos sob a batina escura e um rosto austero, onde os olhos cinzentos eram os únicos pontos de luz.

Tive a estranha sensação de que ele já sabia que eu estava ali, mesmo antes de se virar. Como se sua presença se estendesse além do campo de visão.

— Irmã Laura — chamou Madre Regina, sorrindo. — Que bom que chegou. O padre Andrei ficará conosco por alguns dias, como todos já sabem. Ele foi enviado diretamente de Bucareste para acompanhar nosso projeto com os abrigos e conhecer melhor o trabalho comunitário da nossa diocese.

Assenti com uma leve reverência.

—Novamente, Seja bem-vindo, padre.

Ele se virou por completo. E, mesmo já o tendo visto na noite anterior, o impacto foi o mesmo.

Era quase injusto. A linha do maxilar bem desenhada, os traços duros suavizados pela expressão contida — e aqueles olhos. Cinzentos como a neblina sobre um lago. Não frios, mas impenetráveis. E, por algum motivo, voltados diretamente para mim naquele instante, como se estivesse tentando descobrir algo atrás do meu rosto.

— É um prazer, irmã Laura — disse ele com uma voz baixa, grave, marcada por um leve sotaque que arrastava algumas sílabas, tornando o português quase poético. — Agradeço pela hospitalidade.

Sorri, mas senti o rosto corar. Desviei os olhos rápido demais.

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