Num belo dia, Márcia estava dentro do seu carro, a sensação gelada do ar-condicionado contrastava com o calor abrasador que dominava a cidade. O trânsito caótico e o engarrafamento incessante tornavam a viagem exaustiva.
Depois de enfrentar o trajeto desgastante, Márcia estacionou numa esquina, em frente ao IMS da Maianga, e seguiu a pé pelos corredores do hospital Jorgina Machel (Maria Pia).
Até aquele momento, tudo corria bem. O dia estava tranquilo, sem frustrações na Ala de Geriatria. As conversas das novas estagiárias ecoavam pelos corredores, despertando a curiosidade das enfermeiras e de algumas médicas que ali passavam.
Márcia respirou fundo, apreciando a calma rara daquele dia. Sentia-se leve, até que seu telemóvel vibrou. Uma mensagem de Roger, seu namorado.
— Bom dia, Baby, como estás? Olha Ma… desculpa pela discussão que tivemos na madrugada de hoje.
— Não se preocupe, todo mundo erra. Obrigado pela mensagem — respondeu ela.
Mas, ao ler a mensagem, Márcia se viu perdida, não conseguia pensar somente em Roger. Seu pensamento voava também para Helder.
Um suspiro escapou de seus lábios, mas antes que se perdesse ainda mais na imaginação, a voz metálica dos altifalantes do hospital quebrou o devaneio:
— Dra. Márcia, favor dirigir-se à Unidade de Doenças Infeciosas.
A realidade puxou-a de volta. Guardou o telemóvel, endireitou a postura e seguiu pelos corredores. Mas, no fundo, sabia que sua mente ainda não estava ali.
Márcia correu pelos corredores, o coração acelerado. Ao chegar na ala, o cenário a fez prender a respiração. Seu corpo reagiu no instinto — puxou rapidamente o estetoscópio, pediu luvas e ajustou a máscara.
Diante dela, uma criança em estado crítico. O pequeno corpo tremia de frio, os olhos semiabertos revelando um medo profundo. O vômito era constante. Márcia sentiu um aperto no peito ao notar o inchaço de diarreia escorrendo pelas calças. A criança estava inconsciente.
A tensão tomava conta do ambiente. Márcia respirou fundo. Seus olhos pousaram sobre Helena, a jovem estagiária.
— Helena, monitora os sinais vitais a cada 1-2 horas. Pressão, temperatura, respiração, frequência cardíaca. Qualquer alteração, avisa-me imediatamente.
— Onde está o resultado dos exames?!
— Está aqui, doutora!
Pegou o papel e o analisou rapidamente.
— Eduardo! — chamou o enfermeiro mais experiente. — Precisamos ajustar o tratamento. Agora.
Seu olhar cortante varreu os estagiários que se amontoavam inseguros ao redor.
— Todos, fora da minha zona de trabalho! A menos que algum de vocês se ache competente o suficiente para desenvolver o que eu irei solicitar agora.
Silêncio. Nenhuma resposta. Apenas olhares desviados. Márcia virou-se de costas, com um sorriso cínico.
— Sabia... Bando de fracotes. Têm medo de morrer, mas querem ser médicos.
Olhou para Luísa.
— Doutora Luísa, ajuda-me aqui. Preciso sair um pouco para descansar.
Passou as mãos pelo rosto, tentando aliviar a tensão. Lançou um último olhar para a criança antes de se retirar.
Márcia seguiu para o seu escritório, tentando recuperar o fôlego depois da tensão no hospital. Sentia o corpo exausto, a mente pesada, mas antes que pudesse sequer se acomodar, foi surpreendida—um buquê de flores surgiu diante do seu rosto.
O aroma das rosas preencheu o ambiente, suavizando a atmosfera carregada. Seu espanto se dissolveu em surpresa. As colegas espreitavam pela porta, os olhos brilhando de curiosidade ao verem o deslumbrante buquê. Entre as pétalas suaves, destacavam-se um bilhete misterioso e uma carta de amor.
Elas trocavam olhares cúmplices até que uma delas perguntou:
— Quem foi o galã que te enviou essas rosas?
Márcia ergueu o olhar e, arqueando uma sobrancelha com ironia:
— Vocês não têm nada melhor para fazer?
As colegas riram e se afastaram, mas o burburinho ficou no ar.
Sozinha, voltou o olhar para o buquê. O coração bateu mais forte.
Tirou uma foto do buquê e postou no I*******m. Depois, deslizou os dedos pelo cartão e leu:
"Para o único sorriso fechado que se abriu em noite breu, para os meus lábios."
Seu sorriso se aprofundou. Um arrepio percorreu sua pele. Fechou a porta com pressa.
Queria abrir a carta, mas hesitava. Temia o que as palavras poderiam revelar.
Deu meia volta na sala, inquieta. Pensamentos conflituantes ecoavam em sua mente.
"Estou enganando quem? Meu namorado... ou a mim mesma?"
Márcia deslizou os dedos sobre o envelope. Com um suspiro profundo, rasgou o lacre.
Começou a ler:
Márcia,
Vi-te de novo. E, mais uma vez, foi o teu rosto que me prendeu. O mesmo rosto que uma noite iluminou a escuridão que eu carregava.
Teus olhos… Ah, teus olhos. Médios, profundos, escondendo segredos.
O jeito como semicerras as pálpebras quando sorris, como se o mundo ao teu redor desaparecesse.
Os teus lábios, Márcia… moldados para sussurrar palavras que nunca tive o direito de ouvir.
Teus cabelos… Crespos, longos, dourados nas pontas, dançando com a brisa.
O ear cuff dourado, o piercing nostril, o colar de miçangas africanas. Carregas tua história nos detalhes.
Quando te vi naquela tarde, percebi que nada em ti mudou. Mas tudo mudou.
És o mesmo enigma que me marcou. E ainda assim, continuo olhando.
Entre todas as memórias que tento apagar, o teu rosto é a única que se recusa a partir.
As lágrimas de Márcia caíam sobre o papel. A fera presa despertou. Fúria, paixão e desejo. Um anseio irreprimível de vê-lo.
Márcia saiu apressada do hospital, mas o telemóvel tocou. Roger.
— Oi amor, estou meio ocupada. Podemos falar mais tarde?
— Ah… desculpa. Te espero para o jantar?
— Melhor não, acho que vou fazer noite hoje, tenho casos complicados. Depois te ligo, bebê. Não abre uma garrafa de vinho sem mim!
Sabia que mentia. Mas não podia resistir ao desejo de estar com seu herói.
O relógio marcava cinco e meia quando saiu.
Ele estava lá, encostado ao carro, os olhos cravados nela.
Ela aproximou-se, abriu a porta do carro. Ele a fechou, suave.
— Queira me acompanhar por favor? — disse ele, estendendo a mão.
— Para onde?
— Para um lugar onde o teu sorriso tem mais vida, teus olhos possam brilhar, e o calor do universo nos toque durante a noite escura... debaixo dos meus lençóis.
Márcia sorriu. Desejava estar nos braços dele, mas provocou:
— Não, eu vou para casa. Meu amor está me esperando.
— E o que tem teu amor? Eu quero é ficar contigo, não com ele. Entra no carro, vem comigo. Só não bebas demais... o álcool daí é enganador.
Ele abriu a porta. Márcia hesitou. Mas seu corpo já tinha decidido por ela.
Subiu ao carro. Seus lábios foram recebidos com beijinhos silenciosos, um abraço apertado. Saíram dali, para onde só os dois pudessem ter mais espaço… e se tocar sem serem vistos.
— Que lugar é este que a gente vai?