Teu rosto parte 1

Passaram-se dois anos. Helder vagava por Luanda, arrastado por um misto de esperança e desespero, procurando por Márcia em cada esquina, em cada sombra, em cada olhar desconhecido.

A cidade grande parecia zombar de sua dor, engolindo qualquer vestígio de Márcia sem deixar rastros. O que antes era determinação se transformou em exaustão. Será que tudo não passara de uma ilusão? Uma noite intensa e nada mais?

Naquela tarde, obrigado pelas ordens irritantes do irmão mais velho, ele seguiu rumo ao distrito urbano da Samba para entregar uma encomenda. O sol castigava a cidade sem piedade, e Helder, protegido por óculos escuros e uma sombrinha, atravessava a rua quando algo fez seu coração parar por um segundo.

Do outro lado, entre risos e conversas animadas, lá estava ela. Márcia.

Aquela pele iluminada pelo sol, aquele jeito de jogar os cabelos para trás… era ela. Mas ela não estava só. Paula e Luísa, suas amigas, a acompanhavam, e juntas pareciam tão leves, tão felizes, como se nada houvesse acontecido.

Parte dele gritava para ir até ela, perguntar o que havia acontecido. Mas… e se ele estragasse aquele sorriso? E se sua presença trouxesse algo que ela queria esquecer?

Virou o rosto e seguiu seu caminho.

Quando chegou ao encontro do irmão, levou uma bronca.

— Por que demoraste tanto? Outra vez pensando naquela garota do bordel? Quando vais entender que aquilo foi apenas um momento? Toda puta assustada faz promessas que nunca vai cumprir. Esquece essa história, maninho. Foca nos estudos, está bem?

Aquelas palavras cortaram Helder como uma lâmina afiada. Seu peito ardeu, e seus punhos se cerraram involuntariamente.

— Ela não é uma puta! — retrucou, a voz carregada de indignação. — Ela é diferente de todas as mulheres daquele lugar. Não é uma dessas bandidas com quem tens se deitado!

O ar congelou. Num instante, Edgar avançou, sua mão estalando no rosto do irmão mais novo. O tapa ecoou, deixando um silêncio pesado.

Helder não recuou. Edgar respirou fundo.

— Não tive intenção... — murmurou, esfregando a própria mão. — Mas mereceste. Não quero ter que fazer isso outra vez, por isso esquece essa garota. Aliás, mais tarde vamos a uma festa do Ministério da Saúde. Vão condecorar as novas médicas residentes do Hospital Maria Pia.

Helder permaneceu imóvel por alguns segundos. Ergueu o rosto, recompondo-se.

A dúvida era um fardo pesado demais para carregar. Com um suspiro profundo, decidiu se agarrar à única chance que tinha.

Virando-se para o motorista, com um olhar carregado de urgência e esperança:

— Quero que encontres a garota do bordel.

✶✶✶

A cerimônia de condecoração das novas médicas do Hospital Maria Pia transcorria sob luzes alvas e trajes luxuosos. O rosto de Márcia refletia perplexidade. Mesmo envolta no austero uniforme, estava deslumbrante.

Enquanto a Ministra discursava, uma comitiva de jovens trajando ternos entrou no salão. Entre eles, Helder. Calça branca com vinco, camisa safari azul bebê, relógio caro no pulso, e no peito a estrela de sua igreja.

Aproveitando um momento de distração, saiu discretamente. Lá fora, recostou-se contra o retrovisor do carro, perdido em pensamentos.

As luzes do estacionamento não eram fortes, mas ainda assim, viu Márcia passar com Paula. Ela ia ao banheiro retocar a maquiagem.

Helder hesitou, a conversa com Edgar ainda ecoando. Mas libertou-se.

— Jovem, podes nos deixar a sós? — pediu Helder, firme, os braços cruzados atrás do corpo.

Paula entendeu o silêncio de Márcia como resposta e se afastou.

— Nem no meu próprio local de trabalho eu tenho paz? Estás me seguindo? — disparou Márcia, evitando os olhos dele.

— Como pode um homem perseguir uma fera dentro da sua própria selva? — provocou Helder, a voz medida como peça de xadrez.

— Eu não sou uma peça no teu jogo. Então, faz-me um favor: segue com teu jogo… sozinho.

Tão logo se afastou, foi interceptada por uma voz carregada de cigarro e álcool.

— O cão pode se perder, mas jamais esquece o caminho de casa. Nesse caso… a cadela. — disse Humberto. — Preciso de um broxe… Tu podes esconder essa tua nova personalidade, mas de mim, não.

— Aqui não estamos no bordel onde mandavas. E eu não sou tua cadela.

— Pensa duas vezes antes de cruzar o meu caminho. Posso adulterar tua medicação e te matar lentamente…

— Sai daqui agora, antes que eu acabe… — disse ele, mas foi interrompido por Helder.

— Você de novo? — disse Humberto. — Isso é o quê, um parque de diversão?

— Quem fala "puta" na mulher que eu amo acertará as contas comigo ou com meu irmão deputado. Entendeste?

— Márcia, vamos…

Ela estava ferida, acreditava que Helder negara um filho e mentiu com promessas vazias.

— Estava tudo controlado. Tu estragaste a minha noite mesmo…

Helder sorriu. Subiram no carro e saíram do memorial.

Quase meia-noite. Márcia acendeu as luzes da cozinha, pegou duas taças e uma garrafa de vinho branco. Sentaram-se.

— O teu rosto, o mesmo, lindo… entre os olhos escondidos, os lábios canudos, o piercing, o colar de miçangas…

— O teu rosto não sai da minha cabeça. É isso que me levou à loucura.

— O meu rosto? — disse ela, tocando a taça.

— Aquela noite foi intensa. Depois da segunda noite, ao acordar e perceber que não estavas, fiquei confuso.

— E por que não foste à minha procura? Estavas ocupado demais com a Daniela? Deixei minhas roupas no teu quarto.

— Todas as manhãs e noites livres eu ia ao bordel. No final, nada. Você sumiu!

— Como se eu não tivesse motivo? A Daniela é uma mulher como eu. Se ela abriu as pernas, foi porque tu juraste algo que não és capaz de dar. Sai da minha casa. Agora!

Helder riu, tomou outro gole.

— Foste boba em pensar que fui eu a negar o filho. Era o Edson… meu irmão.

— E a Daniela?

— Já nem está em Angola. Minha mãe a mandou para Cuba.

— Eu só queria falar do teu rosto… — disse ele. — Mas você nem quer me ouvir. Acho que vou ter que mandar um e-mail.

Roger surgiu. Viu as taças, viu Márcia seminua. Abraçou-a à força, beijou-a, furioso.

— Quem és tu?

— O guarda-costas da tua esposa. Ela não te contou?

— Vais me dizer quem é ele?

— Roger, a noite é longa. Falamos amanhã…

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