O ateliê ainda guardava o cheiro da mãe, mesmo após anos de portas fechadas.
Era um aroma indefinido, feito de tinta seca, madeira antiga e um perfume floral que ninguém mais usava. Isabelle respirava fundo toda vez que entrava ali, como quem tenta puxar do ar o vestígio de uma presença. A sala era ampla, com janelas que davam para o jardim interno. A luz entrava em feixes largos, atravessando partículas de poeira que dançavam no ar. As cortinas eram pesadas, mas estavam sempre entreabertas, como se ainda obedecessem o gosto da mulher que as escolhera. Luísa Lins. Filha legítima de Armando. Mãe de Isabelle. A única pessoa que já ousou desafiar o império por dentro e que pagará o preço por isso. Isabelle se aproximou da grande mesa central. Os pincéis ainda estavam lá, dispostos em potes de cerâmica. As tintas, em tubos fechados e outros ressecados. Algumas telas encostadas na parede mostravam traços firmes e cores vivas. Eram retratos fragmentados. Olhos sem rosto. Mãos que seguravam flores. Costas nuas, viradas para o observador. Havia algo de urgente e escondido em cada traço, como se a artista pintasse não o que via, mas o que não podia dizer em voz alta. Isabelle passou os dedos sobre uma tela em branco, coberta de pó. Nunca soube pintar. Já tentara, na adolescência, como forma de se conectar à mãe. Mas seus traços saíam tensos, tímidos. Ao contrário de Luísa, que deixava a alma escorrer pelo pincel, Isabelle só conseguia desenhar as próprias grades. No canto da sala, havia uma estante onde ela escondia um pequeno tesouro: os diários da mãe. Escritos em cadernos comuns, de capa dura, datados com esmero. Isabelle os encontrara pouco tempo após a morte dela, enquanto mexia nas coisas sem permissão. Nunca contara a ninguém sobre os cadernos. Eles eram seus e apenas seus. Sentou-se no chão, encostando as costas na estante. Puxou um dos volumes ao acaso e abriu. A caligrafia de Luísa era elegante, mas levemente inclinada, como se sempre tivesse pressa. “Hoje sonhei que corria descalça no meio da rua. Meu vestido estava sujo, minha boca cheia de riso. Armando acordaria furioso se visse isso. Mas ainda assim, no sonho, eu era feliz.” Isabelle sorriu sem querer. Quantas vezes já lera aquela mesma frase? Centenas. Milhares. E ainda assim, cada leitura parecia uma nova ferida. Sua mãe morreu quando ela tinha dezesseis anos. Oficialmente, fora um aneurisma fulminante. Extraoficialmente, todos sabiam que Luísa Lins havia desistido. Passara os últimos anos calada, reclusa, afastada da vida pública e da própria filha. Muitos a chamavam de instável, excêntrica. Outros, de fraca. Mas Isabelle sabia a verdade: sua mãe não era fraca. Era uma mulher forte demais para se deixar moldar. E foi por isso que foi silenciada. Ela lembrava do velório como se tivesse acontecido ontem. O salão frio. As flores brancas. As palavras vazias de homens engravatados. E o avô, impassível. Como se nada tivesse acontecido. Como se a morte de sua única filha fosse apenas um tropeço no legado. Depois daquele dia, Isabelle se calou por dentro. Voltou a ler outro trecho do diário. “Armando diz que sou emocional demais. Que falo com os olhos. Que gesticulo como uma artista de rua. Que a política exige contenção. Engraçado. Ele sempre quis me calar. E eu sempre quis cantar.” Isabelle fechou o caderno e o apertou contra o peito. Às vezes, ela achava que também morreria assim. Não de doença. Mas de silêncio. De contenção. De inexistência. Ela se levantou devagar, como se seus ossos tivessem mais idade do que realmente tinham. Caminhou até a janela e apoiou a testa no vidro. Lá fora, o jardineiro cortava os arbustos com precisão cirúrgica. Havia um canteiro de rosas vermelhas em flor. Tudo estava bonito demais. Arrumado demais. Falso demais. Ela perguntou, não pela primeira vez, o que aconteceria se simplesmente desaparecesse. Fechou os olhos e se imaginou correndo pelas ruas, como a mãe no sonho. De tênis. Com um moletom qualquer. Sem maquiagem. Sem agenda. Sem fotógrafo. Sem segurança. Sem câmeras vigiando cada passo. Sem Armando. Se imaginou trabalhando como garçonete. Ou professora. Ou florista. Em algum lugar pequeno, longe dali. Um lugar onde pudesse escolher o que comer, o que vestir, o que dizer. Será que sobreviveria fora da redoma? Ou será que já era tarde demais para reaprender a viver? Um leve toque na porta a trouxe de volta. Dora, a governanta, chamava do lado de fora, com a voz baixa de sempre. — Senhorita, o motorista já está à espera. A dona Heloísa a aguarda para o almoço. Isabelle respirou fundo. Enfiou o diário de volta na estante. Alisou a saia e recompôs a postura. Saiu do ateliê sem olhar para trás. O dia seguia. A agenda seguia. O teatro também. Mas ali, no fundo do peito, algo começava a pulsar com uma força nova. Uma vontade. Um grito ainda sem som. Ela ainda não sabia o que era. Mas sabia que não era mais medo.