Rafaela chegou duas horas depois, entrando pela porta lateral da mansão como fazia desde a adolescência, quando aprendeu que, naquela casa, cada olhar carregava julgamento, cada corredor tinha ouvidos. Era seu ritual silencioso de rebeldia: evitar a entrada principal, os olhares dos empregados, os comentários dos parentes.
Ela nunca pertencerá àquele mundo ou, pelo menos, fingia muito bem que não. Era uma Lins por sangue, mas fazia questão de jamais ser uma por comportamento. Vestia jeans, uma camisa de linho amassada, o cabelo preso em um coque bagunçado. Livre. Real. Um contraste quase violento com os corredores perfeitos daquela mansão asséptica. — Que cara é essa? — disse assim que entrou no quarto, largando a bolsa de couro gasto sobre a poltrona. — Parece que alguém morreu. Isabelle ainda estava sentada à beira da cama, com os joelhos dobrados e as mãos entrelaçadas no colo. Seus olhos fixaram um ponto indistinto do chão, como se ali houvesse um abismo apenas ela pudesse ver. — Alguém morreu — respondeu, sem levantar o rosto. — Eu. Ontem à noite. Publicamente. Rafaela arqueou uma sobrancelha, mas não sorriu. Caminhou até a cama e sentou-se ao lado da prima, com um cuidado quase reverente. — Conta tudo. Isabelle inspirou fundo, como se mergulhasse antes de um mergulho em águas geladas. E então contou. O jantar. O discurso. O anúncio do noivado. O toque de Alexandre que a fez se encolher por dentro. A comemoração forçada. Os flashes. A presença sufocante de Armando Lins. Sua frieza. Sua certeza. Cada palavra saía pesada, como se confessá-las as tornasse mais reais. Mais cruéis. — Ele tem vinte anos a mais que eu, Rafa. E aquele olhar... — ela fechou os olhos por um instante. — Não é só arrogância. É posse. Ele me examina como se estivesse escolhendo um carro novo. Me elogia como quem fala de investimento. Rafaela franziu a testa. O olhar, agora, era de alerta. De fúria silenciosa. — E você disse que não queria? — Disse. Hoje cedo. Tive coragem. Enfrentei meu avô. E sabe o que ele disse? Que amor é um luxo. Que o que importa é o nome da família. Que eu tenho que respeitar Alexandre. Representar bem os Lins. — Filha da... Isabelle segurou a mão dela antes que a raiva explodisse em algo irreversível. — Eu não sei o que fazer, Rafa. Ele controla tudo. O dinheiro. Meu passaporte. Os cartões. Até meus compromissos são filtrados. Eu não existo sem a aprovação dele. Estou cercada. O quarto, antes apenas bonito, agora parecia uma cela. O espelho, uma vigilância. O closet, um figurino. A cama, um altar onde se sacrificava em nome da linhagem. Rafaela, por um instante, ficou em silêncio. Depois levantou o queixo e segurou o rosto da prima entre as mãos, como se quisesse lembrá-la de que ainda havia sangue em suas veias. — Então a gente vai dar um jeito. Eu juro. Eu não vou deixar você virar uma boneca de político nojento. Isso aqui parece uma monarquia do século dezenove. — É pior — Isabelle murmurou. — Lá, ao menos, elas podiam mandar cortar cabeças. As duas riram, brevemente. Um riso nervoso, trêmulo, como uma fresta de luz num quarto escuro. Um escape. Uma lembrança de que ainda eram humanas. Mas o momento se desfez com uma batida seca na porta. — Senhorita Isabelle — disse a voz do mordomo, formal e contida —, uma entrega. Da parte do senhor Alexandre Barreto. Isabelle trocou um olhar com Rafaela. O coração bateu mais rápido, como se já soubesse o que viria. Levantou-se e caminhou até a porta. O mordomo entregou-lhe uma caixa retangular, pesada, envolta em papel dourado e laço de cetim. A beleza do embrulho era quase ofensiva. De volta ao quarto, ela abriu com cuidado. Como quem desarma uma armadilha. Dentro, repousava um colar de esmeraldas cercado por diamantes. Impecável. Caríssimo. O tipo de joia que não se dá por afeto — se dá por domínio. E junto a ele, um bilhete escrito à mão, em caligrafia firme: "Para a mulher que em breve será minha. Que sua beleza nunca precise se esconder. — Alexandre." Isabelle fechou os olhos. O toque do papel parecia queimar sua pele. Rafaela pegou o colar como quem manuseia uma cobra. — Caríssimo — murmurou. — E horrível. Parece uma corrente de ouro pra prender gente bonita. — É exatamente isso que ele quer — Isabelle respondeu. — Uma corrente elegante. — Vai devolver? Ela hesitou. Olhou de novo para a caixa, para a jóia, para o símbolo de tudo que a aprisionava com laços de luxo. — Não agora. Se eu recusar rápido demais, ele vai achar que tem o controle. Preciso ser estratégica. Rafaela assentiu, sem tirar os olhos dela. — Você está pensando em resistir de dentro? Isabelle respirou fundo. Pela primeira vez, havia algo nos olhos dela que não era apenas dor. Era cálculo. Era fogo. — Se não posso fugir por enquanto... então vou encontrar rachaduras. Nas paredes. Nos discursos. Nos sorrisos. Nem que seja uma de cada vez. As duas se sentaram no chão, como faziam quando eram crianças e achavam que o mundo era grande demais para entenderem. Agora, sabiam que o mundo era um tabuleiro. E estavam prontas para jogá-lo. O colar ficou sobre a cama, reluzindo como uma armadilha de luxo. E Isabelle, em silêncio, começou a rascunhar um plano. Não no papel. Mas dentro de si. Com cuidado. Com dor. Com raiva. Ela ainda era uma prisioneira. Mas talvez, só talvez, já estivesse aprendendo a cavar túneis por trás das paredes de ouro.