O almoço foi organizado com toda a pompa de uma recepção diplomática.
Toalhas brancas esticadas com perfeição, taças de cristal reluzindo ao sol como se estivessem em cena, garçons de luvas impecáveis deslizavam silenciosos entre as mesas com a precisão de um balé ensaiado. No jardim dos fundos, cortinas de linho balançavam ao vento leve, enquanto arranjos florais em tons pastel davam o toque de falsa delicadeza ao teatro montado. Tudo ali exalava uma sofisticação ensurdecedora — e artificial. Isabelle observava tudo com olhos vazios, como quem assiste a um espetáculo do qual não se lembra de ter aceitado o papel principal. A maquiagem perfeita escondia as olheiras mal dormidas. O vestido apertava sua cintura com a mesma rigidez com que o controle sobre sua vida estava sendo imposto. Nada naquele cenário parecia real. Nem os sorrisos, nem os aplausos, nem os brindes. Nada, exceto o aperto que se formava em seu estômago, ácido e persistente, como se seu próprio corpo a alertasse de que algo estava profundamente errado. Alexandre chegou com a pontualidade arrogante de quem sabe que o mundo espera por ele. O perfume amadeirado que o acompanhava chegou antes de sua voz, preenchendo o ambiente com uma presença imponente e sufocante. Seu terno azul-marinho, impecável e sob medida, parecia fundir-se ao seu corpo como armadura. O cabelo milimetricamente penteado e o sorriso tão bem treinado quanto seus discursos políticos completavam o disfarce do homem que ele fingia ser. Ao lado, como uma comitiva real, dois assessores e um consultor de imagem que Isabelle já vira inúmeras vezes em campanhas. Todos com olhares avaliativos, clipboards invisíveis em mãos, registrando cada gesto dela como se fossem dados em uma pesquisa de opinião. — Isabelle — ele disse, com uma voz arrastada e baixa, carregada de intenções dobradas. Uma voz que acariciava e ameaçava ao mesmo tempo. — Você está divina. Ela forçou um sorriso, o mesmo que vinha ensaiando há semanas. Estendeu a mão por formalidade, mas ele ignorou o gesto e a puxou para um beijo demorado demais na bochecha. O toque ficou tempo demais ali. Era um aviso: tudo que ela fazia agora, inclusive como era tocada, pertencia a ele. O olhar de Alexandre percorreu cada centímetro de sua roupa, sem disfarces. Um escaneamento silencioso para confirmar se ela obedecerá. E obedecerá. O vestido foi escolhido por ele. Azul-petróleo, justo na cintura, com um decote contido, porém intencional. Não era ela naquele tecido — era uma personagem criada sob medida. Os sapatos, entregues pela manhã, vieram acompanhados de um bilhete em papel caro e caligrafia sóbria: “Use esses. Realçam seu porte.” Como se ela fosse um vaso decorativo. Como se sua aparência fosse parte de uma vitrine política. Sentaram-se à mesa em frente ao espelho d'água, enquanto os fotógrafos discretos — mas onipresentes — captavam cada ângulo. O almoço, segundo os convites, era “uma reunião informal para alinhar estratégias públicas do noivado”. Mas Isabelle percebeu, em poucos minutos, que não passava de uma vitrine cuidadosamente montada para avaliação. Avaliação dela. Alexandre falava como se estivesse em um palanque. Sua voz era clara, calculada, envolta em camadas de carisma treinado. Cada frase cuidadosamente pontuada por valores como prestígio, tradição e futuro. Não havia improviso. Tudo era milimetricamente roteirizado. E sempre que Isabelle se permitia desviar do script — comentando, por exemplo, sobre uma exposição de arte contemporânea que queria visitar ou sobre sua vontade de retomar o curso de literatura —, ele reagia com um sorrisinho frio, quase imperceptível, como um corretor de redação reprovando uma ousadia fora do tema. — Isabelle está se redescobrindo — disse ele, com a condescendência de um homem corrigindo uma criança em público. — Está aprendendo o que realmente importa. Ela o encarou por um segundo, surpresa com a naturalidade do desprezo. Aquilo não era só controle. Era doutrinação. — Eu sei exatamente o que importa — respondeu, com um tom contido, mas firme. — Só não acho que política deve engolir identidade. O assessor tossiu, desconfortável. Alexandre riu, com uma calma estudada. Sua mão pousou sobre a dela, firme demais, como um grilhão de carne e osso. — E é isso que mais me encanta nela. Essa... chama. Vai ser fascinante assistir enquanto ela amadurece. “Amadurece.” A palavra ficou martelando na mente de Isabelle como um veredito. Na língua dele, amadurecer significava render-se. Abandonar opiniões. Trocar convicções por obediência. Silenciar. Quando o almoço terminou, ela alegou uma dor de cabeça. Uma desculpa frágil, mas eficaz. Alexandre a dispensou com um beijo forçado na testa e olhos cheios de promessas disfarçadas de preocupação. No quarto, ela tirou os sapatos como quem se livra de algemas. Cada passo descalço no piso frio parecia um alívio. Caminhou até a janela. O jardim abaixo estava vazio agora, mas o eco dos risos forçados, dos brindes estratégicos, dos flashes calculados ainda reverberava em sua memória como uma ofensa. Alexandre não era apenas controlador. Ele era meticuloso. Disciplinado. Inteligente. Um estrategista. Ele não usava força. Usava estrutura. E isso a aterrorizava mais do que qualquer ameaça direta. Rafaela entrou sem bater, como sempre fazia. Seus olhos analisaram o rosto de Isabelle num relance, como se buscasse sinais de danos invisíveis. — Vi que você subiu. Ele falou alguma merda? — Ele falou tudo. Sem dizer nada. — Clássico. Isabelle se virou, encostando as costas na parede. O vestido agora parecia um disfarce desconfortável. A maquiagem, uma máscara cansada. — Ele vai tentar me apagar — disse, a voz rouca. — Aos poucos. Vai apagar minhas opiniões, minhas roupas, meus amigos, meu tom de voz. E quando eu perceber, vou estar do lado dele em Brasília, sorrindo em fotos como a esposa perfeita de um futuro governador. Rafaela se aproximou e segurou a mão dela com firmeza. — Não se deixa apagar. Você tem muita luz. Muita raiva. Usa isso. J**a com ele. Aprende as regras... e depois quebra todas. Isabelle assentiu, os olhos marejados, mas sem lágrimas. Ela já chorara demais. Agora era outra coisa. Era raiva. Era estratégia. — Se ele quer uma boneca, vai ter que aprender que algumas têm lâminas escondidas.