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Capítulo 03: Regras de Ouro, Silêncios de Ferro

O carro deslizava pelas avenidas arborizadas da zona nobre como um cisne solitário em um lago de porcelana: silencioso, elegante, alheio à realidade pulsante ao redor. As janelas escuras filtravam o mundo, transformando tudo em uma pintura suave e inatingível.

Isabelle observava a cidade do outro lado do vidro, como quem assiste à própria vida acontecer com um atraso de décadas. Do lado de fora, tudo parecia cheio de cor, som e verdade: ambulantes discutiam preços com clientes apressados, crianças corriam entre os carros rindo alto, casais jovens se abraçavam em bares que cheiravam a fritura e liberdade. Aquela era a cidade real. Mas para ela, era só um cenário. Apenas um pano de fundo distante de um filme no qual ela jamais foi convidada a participar, embora sua imagem, ironicamente, estampasse os cartazes.

O motorista parou em frente a um restaurante francês no Lago Sul. Discreto e requintado, era conhecido por abrigar reuniões silenciosas entre políticos e empresários que já não precisavam de dinheiro, mas sim de influência. Lavandas frescas ornamentavam a entrada, exalando perfume de um luxo que fazia questão de parecer natural. Uma música clássica, provavelmente Vivaldi, tocava tão baixo que parecia vir do chão.

O maître, com um sorriso profissional, inclinou levemente a cabeça.

— Ela já está na mesa do fundo, senhorita Isabelle.

Ela agradeceu com um gesto e avançou entre as mesas elegantes, sapatos afundando discretamente no carpete grosso. Cada passo parecia ecoar dentro de si, lembrando que ela estava indo ao encontro de mais uma apresentação. Mais um papel.

Heloísa Marques estava impecável, como se tivesse sido desenhada para aquele tipo de ambiente. Terninho azul claro, colar de pérolas cintilando sob a luz suave, óculos escuros que pareciam mais um escudo do que um acessório. Sentada com a postura de uma imperatriz casual, erguia a taça de espumante com dedos longos e magros, como quem brinda ao próprio reflexo.

— Minha querida! Está cada vez mais linda — disse, levantando-se com um entusiasmo que soava como cortesia programada. — Sente-se, sente-se. Pedi um espumante para celebrarmos.

Celebrar o quê?, Isabelle quis perguntar. Mas sorriu como havia aprendido a fazer: com lábios contidos e olhos anestesiados.

— Obrigada pelo convite, dona Heloísa.

— Ora, me chame de Heloísa, por favor. Somos praticamente família agora, não somos?

A palavra “família” pesou nos ouvidos de Isabelle como uma pedra molhada. Sentou-se. O garçom serviu o espumante com gestos precisos. Ela apenas molhou os lábios — não pelo sabor, mas para manter as aparências.

— Você será a estrela da nossa nova campanha — anunciou Heloísa, deslizando o celular sobre a mesa com uma expressão de orgulho quase maternal. — O projeto com meninas carentes de Planaltina vai precisar muito da sua imagem. E da sua sensibilidade, claro.

Na tela, uma prévia do banner digital. O rosto de Isabelle em preto e branco, suavizado, com olhos digitalmente aumentados, rodeado por crianças sorridentes de diferentes idades e etnias. A legenda falava sobre esperança, empatia e renovação.

Isabelle encarou a imagem por alguns segundos. Aquela não era ela. Aquilo era uma invenção, uma escultura digital moldada para parecer doce, pura e maternal. Inofensiva. Um rosto que não protestaria, não resistiria, não diria “não”. E ainda assim, era exatamente o que esperavam dela. A perfeição sem alma.

— É uma causa linda — respondeu com doçura calculada. — Só me avise com antecedência para que eu possa adaptar a agenda.

— Claro, querida. Alexandre também estará na cerimônia de abertura. Imagine só: vocês dois juntos nesse evento. Será a cara da esperança nacional. Uma nova geração de líderes, unidos pelo bem social.

Isabelle sustentou o sorriso, não pelo elogio, mas para não demonstrar o enjoo que lhe subia à garganta como fumaça densa. Almoçaram, ou melhor, mastigaram aparências. Os talheres tilintavam discretamente contra porcelanas francesas, os pratos vinham decorados como obras de arte — mas não havia sabor, apenas teatro.

Heloísa falava muito. Sobre política, sobre cultura, sobre a importância de manter uma boa postura pública, sobre como o novo projeto de lei do marido “representava um marco para o país”. Falava sobre como era revigorante ver “a juventude da alta sociedade engajada com causas reais”. Isabelle apenas ouvia, sorria, acenava. Cada frase sua era medida, ensaiada. Palavras como “importante”, “feliz”, “disposta” saíam de sua boca como peças de xadrez colocadas no tabuleiro por outro.

A sobremesa chegou. Uma torta de frutas vermelhas com chantilly artesanal, que ela não pedira. Isabelle olhou para o prato e viu, por um instante, um espelho. Tudo ali era bonito demais. Delicado demais. E, ainda assim, indigesto.

— Preciso ir. Tenho compromissos à tarde — disse, com um sorriso leve.

— Claro, claro. E lembre-se: Alexandre está encantado com você. Dê uma chance a ele. Você não sabe a sorte que tem.

Ela se despediu com um beijo no ar, como mandava o protocolo social. No carro, fechou os olhos por alguns segundos. E então, com a voz calma, pediu ao motorista:

— Não volte direto. Dê voltas. Quero ver a cidade.

O motorista apenas assentiu. O carro começou a rodar sem destino fixo. Isabelle olhava pela janela com avidez, como se buscasse provas de que o mundo ainda existia fora das molduras douradas. Viu um menino brincando com uma pipa feita de sacola plástica. Uma moça dançando sozinha na calçada com fones de ouvido. Um senhor vendendo picolés com um carrinho velho.

Aquilo era vida. Crua. Imperfeita. Livre.

Mas cada vez mais distante.

Ao chegar à mansão, foi recebida por Dora com sua costumeira descrição.

— Seu avô pediu que estivesse pronta às dezenove horas. O jantar com os Barreto será às vinte, no clube diplomático. Ele enviou uma lista de temas a evitar.

Claro que enviou, pensou Isabelle. Até o que não dizer era roteirizado.

Subiu para o quarto, tirando os brincos pelo caminho, sentindo-os pesarem mais do que o ouro deveria. Por um momento, ao fechar a porta, foi tomada por uma exaustão que parecia vir de dentro da alma. Não era cansaço físico. Era como se seu corpo estivesse carregando o peso de todas as versões de si mesma que teve que construir para sobreviver.

Deitou-se na cama. O teto acima era pintado com detalhes barrocos: anjos flutuando entre nuvens douradas. Mas Isabelle via apenas o vazio.

Fechou os olhos. Pensou na mãe. Pensou nas meninas de Planaltina, nos rostos reais que seriam usados como escada para votos. Pensou no próprio rosto, retocado em uma imagem que não lhe pertencia.

E então se levantou.

Foi até o closet. As roupas para o jantar já estavam separadas: um vestido azul royal, de corte clássico e elegante, sapatos de salto médio, brincos discretos de safira. Isabelle olhou para tudo aquilo com uma náusea silenciosa. Como se estivesse diante de instrumentos de tortura disfarçados de beleza.

Não queria ser elegante.

Não queria ser apropriada.

Não queria ser exemplo de nada.

Queria sumir.

Mas isso viria depois.

Por enquanto, precisava aguentar.

Mais uma noite.

Mais uma performance.

Mais uma dança na gaiola.

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