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Capítulo 4 — O Passado nas Sombras

O quarto estava mergulhado na escuridão, mas Pedro não dormia. Fazia muito tempo que as noites deixaram de ser refúgio; agora eram armadilhas. Deitava-se, fechava os olhos, e os fantasmas vinham como ladrões, arrancando-lhe o pouco de paz que ainda fingia ter.

Virou-se na cama, os lençóis revirados pelo corpo, o peito arfando como se tivesse corrido quilômetros. O coração batia rápido demais. Na mesa de cabeceira, a foto insistia em chamá-lo. Ele tentou ignorar, mas era impossível.

Com dedos trêmulos, pegou a moldura. O vidro frio contra a pele fez um arrepio percorrer-lhe a espinha. Olhou o sorriso dela — Bárbara. Cabelos longos soltos ao vento, os olhos claros iluminados pela praia ao fundo. Ao lado, ele mesmo, tão diferente do homem que era agora: jovem, confiante, iludido com a ideia de que tinha o controle de tudo.

— Eu te perdi — sussurrou, apertando a foto contra o peito.

O peso da lembrança foi brutal, arrastando-o para trás no tempo como uma correnteza que não se pode lutar contra.

A música alta ainda ecoava em seus ouvidos. Era uma festa de noivado daquelas que lotam páginas de revista, com convidados importantes e flashes a cada segundo. Ele usava um terno escuro, impecável, mas o olhar não saía dela. Bárbara. Vestido azul que cintilava sob as luzes, pés descalços no salão porque ela sempre dizia que odiava saltos.

— Estão todos olhando pra você — ele murmurou, segurando-a pela cintura.

— Não, Pedro. Estão olhando pra nós. — Ela riu, jogando os cabelos para trás, a alegria dela mais forte que qualquer luxo ao redor.

Ele queria acreditar nisso. Queria acreditar que o mundo, com suas pressões, negócios e ameaças veladas, não existia quando estavam juntos.

Naquela noite, dançaram até a madrugada. Ele, geralmente contido, deixava-se levar pelo riso dela, pelo jeito espontâneo com que fazia piadas até com os políticos presentes. Bárbara tinha esse dom: transformar a gravidade em leveza, arrancar vida de qualquer sombra.

Quando decidiram ir embora, Pedro a levou até o carro. Ela jogou os sapatos no banco de trás e apoiou os pés descalços no painel, cantarolando enquanto ele acelerava.

— Você dirige rápido demais — ela disse, divertida, mas com um fio de preocupação real.

Ele sorriu, sem tirar os olhos da estrada.

— Relaxa, amor. Eu controlo tudo.

O estalo foi seco, metálico.

Pedro franziu o cenho, tentando frear, mas o pedal afundou sem resistência. O carro não obedeceu. O volante vibrou em suas mãos. O coração disparou.

— Pedro? — a voz dela tremeu.

— O freio não está funcionando! — ele gritou, puxando o volante para o lado.

O mundo virou caos em segundos. O carro derrapou, rodopiou na pista molhada, os faróis iluminando o vazio. O som do vidro estilhaçando, o metal retorcido e o grito dela foram a última coisa que ouviu antes do impacto.

Quando abriu os olhos, tudo estava de cabeça para baixo. O cinto o prendia no banco, o sangue escorria pela testa, e o gosto metálico inundava sua boca. O carro estava destruído, o cheiro de gasolina queimando suas narinas.

Virou a cabeça, desesperado. Bárbara.

Ela estava imóvel, a cabeça caída para o lado, o rosto manchado de sangue.

— Não… não, por favor, não! — Pedro tentou soltar o cinto, mas os dedos tremiam demais. — Bárbara!

Ela abriu os olhos lentamente, como se fosse um esforço sobre-humano. A mão dela procurou a dele, fraca, quase sem força.

— Não foi sua culpa… — a voz saiu num sussurro frágil, entrecortado. — Eu te amo.

E então, o silêncio.

Pedro gritou, mas nenhum som saiu.

De volta ao presente, ele caiu de joelhos no carpete, a foto escorregando das mãos e caindo virada para baixo. O corpo inteiro tremia, e por mais que tentasse controlar a respiração, era inútil. O passado vinha como avalanche, sufocando, esmagando.

Agarrou os cabelos com as mãos, como se pudesse arrancar da cabeça as imagens que o torturavam. Mas elas estavam gravadas ali, para sempre.

— Bárbara… — a voz saiu embargada, quase um soluço. — Eu te matei.

A escuridão parecia zombar dele.

O silêncio do quarto não era paz. Era uma sentença.

Pedro ficou ali, ajoelhado no carpete, até a respiração voltar ao normal. Passou a mão pelo rosto, sentindo a pele úmida de suor. O cigarro e o uísque estavam a poucos passos, mas, por algum motivo, não o atraíram. Levantou-se com esforço, pegou a foto caída no chão e colocou-a de volta na estante, virada para baixo desta vez. Não suportava mais olhar.

Caminhou até a sacada e abriu a porta de vidro. O vento frio da madrugada o atingiu, arrepiando-lhe os braços nus. Acendeu um cigarro, tragou fundo e apoiou-se no parapeito. As luzes da cidade se espalhavam lá embaixo como constelações distantes. Para ele, não passavam de pontos indiferentes. O mundo seguia, enquanto ele estava preso ao mesmo lugar.

“Não foi sua culpa.” A voz de Bárbara ecoava em sua cabeça. Ele odiava essa frase. Era mentira. Ele tinha certeza disso.

Um barulho suave atrás dele o fez virar-se. Rose estava parada na porta, como se fosse parte da sombra do corredor. Usava uma calça de treino preta e uma camiseta justa, o cabelo preso em um rabo alto.

— Você não dorme? — perguntou, sem rodeios.

Pedro estreitou os olhos, tragando mais uma vez.

— E você? Vai ficar me vigiando até quando?

— Até ter certeza de que continua respirando — ela respondeu, firme.

Ele soltou uma risada curta, sem humor.

— Boa sorte. Nem eu tenho essa certeza.

Rose deu alguns passos, aproximando-se. Não havia pena no olhar dela, apenas firmeza.

— O passado não pode ser mudado. Mas você ainda pode decidir o que faz com o que restou.

Pedro virou-se de frente, irritado.

— Você não sabe nada sobre o que restou.

— Sei o suficiente. — Ela ergueu o queixo. — Vejo um homem se escondendo atrás de sarcasmo e álcool porque tem medo de enfrentar os próprios fantasmas.

As palavras atingiram fundo, mais do que ele queria admitir. Sentiu a raiva subir, mas ela se misturava a algo pior: a sensação de que ela realmente via através dele.

Ele jogou a bituca do cigarro longe, para além da sacada.

— Você fala demais, Almeida.

— E você sente demais, mas não admite.

O silêncio entre eles pesou, mais denso do que a madrugada. Rose não desviou os olhos; Pedro tampouco. Era como se estivessem presos em um duelo invisível, onde cada palavra ou cada respiração era uma arma.

Por fim, ele suspirou, cansado, e passou a mão pelos cabelos bagunçados.

— Vá dormir, antes que eu me arrependa de não ter mandado você embora ontem.

Rose não se moveu.

— Você não vai me mandar embora, Pedro. Porque, no fundo, sabe que precisa de mim.

Ele ficou imóvel por alguns segundos, o coração acelerado, e depois virou as costas, entrando no quarto. Não disse mais nada.

Rose permaneceu na sacada, olhando para as luzes da cidade. Inspirou fundo, tentando aliviar a tensão que ainda pesava nos ombros.

“Esse homem vai me enlouquecer.”

E, pela primeira vez, ela se perguntou se estava ali apenas para protegê-lo… ou também para salvá-lo.

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