Mundo de ficçãoIniciar sessãoO quarto estava mergulhado na escuridão, mas Pedro não dormia. Fazia muito tempo que as noites deixaram de ser refúgio; agora eram armadilhas. Deitava-se, fechava os olhos, e os fantasmas vinham como ladrões, arrancando-lhe o pouco de paz que ainda fingia ter.
Virou-se na cama, os lençóis revirados pelo corpo, o peito arfando como se tivesse corrido quilômetros. O coração batia rápido demais. Na mesa de cabeceira, a foto insistia em chamá-lo. Ele tentou ignorar, mas era impossível. Com dedos trêmulos, pegou a moldura. O vidro frio contra a pele fez um arrepio percorrer-lhe a espinha. Olhou o sorriso dela — Bárbara. Cabelos longos soltos ao vento, os olhos claros iluminados pela praia ao fundo. Ao lado, ele mesmo, tão diferente do homem que era agora: jovem, confiante, iludido com a ideia de que tinha o controle de tudo. — Eu te perdi — sussurrou, apertando a foto contra o peito. O peso da lembrança foi brutal, arrastando-o para trás no tempo como uma correnteza que não se pode lutar contra. A música alta ainda ecoava em seus ouvidos. Era uma festa de noivado daquelas que lotam páginas de revista, com convidados importantes e flashes a cada segundo. Ele usava um terno escuro, impecável, mas o olhar não saía dela. Bárbara. Vestido azul que cintilava sob as luzes, pés descalços no salão porque ela sempre dizia que odiava saltos. — Estão todos olhando pra você — ele murmurou, segurando-a pela cintura. — Não, Pedro. Estão olhando pra nós. — Ela riu, jogando os cabelos para trás, a alegria dela mais forte que qualquer luxo ao redor. Ele queria acreditar nisso. Queria acreditar que o mundo, com suas pressões, negócios e ameaças veladas, não existia quando estavam juntos. Naquela noite, dançaram até a madrugada. Ele, geralmente contido, deixava-se levar pelo riso dela, pelo jeito espontâneo com que fazia piadas até com os políticos presentes. Bárbara tinha esse dom: transformar a gravidade em leveza, arrancar vida de qualquer sombra. Quando decidiram ir embora, Pedro a levou até o carro. Ela jogou os sapatos no banco de trás e apoiou os pés descalços no painel, cantarolando enquanto ele acelerava. — Você dirige rápido demais — ela disse, divertida, mas com um fio de preocupação real. Ele sorriu, sem tirar os olhos da estrada. — Relaxa, amor. Eu controlo tudo. O estalo foi seco, metálico. Pedro franziu o cenho, tentando frear, mas o pedal afundou sem resistência. O carro não obedeceu. O volante vibrou em suas mãos. O coração disparou. — Pedro? — a voz dela tremeu. — O freio não está funcionando! — ele gritou, puxando o volante para o lado. O mundo virou caos em segundos. O carro derrapou, rodopiou na pista molhada, os faróis iluminando o vazio. O som do vidro estilhaçando, o metal retorcido e o grito dela foram a última coisa que ouviu antes do impacto. Quando abriu os olhos, tudo estava de cabeça para baixo. O cinto o prendia no banco, o sangue escorria pela testa, e o gosto metálico inundava sua boca. O carro estava destruído, o cheiro de gasolina queimando suas narinas. Virou a cabeça, desesperado. Bárbara. Ela estava imóvel, a cabeça caída para o lado, o rosto manchado de sangue. — Não… não, por favor, não! — Pedro tentou soltar o cinto, mas os dedos tremiam demais. — Bárbara! Ela abriu os olhos lentamente, como se fosse um esforço sobre-humano. A mão dela procurou a dele, fraca, quase sem força. — Não foi sua culpa… — a voz saiu num sussurro frágil, entrecortado. — Eu te amo. E então, o silêncio. Pedro gritou, mas nenhum som saiu. De volta ao presente, ele caiu de joelhos no carpete, a foto escorregando das mãos e caindo virada para baixo. O corpo inteiro tremia, e por mais que tentasse controlar a respiração, era inútil. O passado vinha como avalanche, sufocando, esmagando. Agarrou os cabelos com as mãos, como se pudesse arrancar da cabeça as imagens que o torturavam. Mas elas estavam gravadas ali, para sempre. — Bárbara… — a voz saiu embargada, quase um soluço. — Eu te matei. A escuridão parecia zombar dele. O silêncio do quarto não era paz. Era uma sentença. Pedro ficou ali, ajoelhado no carpete, até a respiração voltar ao normal. Passou a mão pelo rosto, sentindo a pele úmida de suor. O cigarro e o uísque estavam a poucos passos, mas, por algum motivo, não o atraíram. Levantou-se com esforço, pegou a foto caída no chão e colocou-a de volta na estante, virada para baixo desta vez. Não suportava mais olhar. Caminhou até a sacada e abriu a porta de vidro. O vento frio da madrugada o atingiu, arrepiando-lhe os braços nus. Acendeu um cigarro, tragou fundo e apoiou-se no parapeito. As luzes da cidade se espalhavam lá embaixo como constelações distantes. Para ele, não passavam de pontos indiferentes. O mundo seguia, enquanto ele estava preso ao mesmo lugar. “Não foi sua culpa.” A voz de Bárbara ecoava em sua cabeça. Ele odiava essa frase. Era mentira. Ele tinha certeza disso. Um barulho suave atrás dele o fez virar-se. Rose estava parada na porta, como se fosse parte da sombra do corredor. Usava uma calça de treino preta e uma camiseta justa, o cabelo preso em um rabo alto. — Você não dorme? — perguntou, sem rodeios. Pedro estreitou os olhos, tragando mais uma vez. — E você? Vai ficar me vigiando até quando? — Até ter certeza de que continua respirando — ela respondeu, firme. Ele soltou uma risada curta, sem humor. — Boa sorte. Nem eu tenho essa certeza. Rose deu alguns passos, aproximando-se. Não havia pena no olhar dela, apenas firmeza. — O passado não pode ser mudado. Mas você ainda pode decidir o que faz com o que restou. Pedro virou-se de frente, irritado. — Você não sabe nada sobre o que restou. — Sei o suficiente. — Ela ergueu o queixo. — Vejo um homem se escondendo atrás de sarcasmo e álcool porque tem medo de enfrentar os próprios fantasmas. As palavras atingiram fundo, mais do que ele queria admitir. Sentiu a raiva subir, mas ela se misturava a algo pior: a sensação de que ela realmente via através dele. Ele jogou a bituca do cigarro longe, para além da sacada. — Você fala demais, Almeida. — E você sente demais, mas não admite. O silêncio entre eles pesou, mais denso do que a madrugada. Rose não desviou os olhos; Pedro tampouco. Era como se estivessem presos em um duelo invisível, onde cada palavra ou cada respiração era uma arma. Por fim, ele suspirou, cansado, e passou a mão pelos cabelos bagunçados. — Vá dormir, antes que eu me arrependa de não ter mandado você embora ontem. Rose não se moveu. — Você não vai me mandar embora, Pedro. Porque, no fundo, sabe que precisa de mim. Ele ficou imóvel por alguns segundos, o coração acelerado, e depois virou as costas, entrando no quarto. Não disse mais nada. Rose permaneceu na sacada, olhando para as luzes da cidade. Inspirou fundo, tentando aliviar a tensão que ainda pesava nos ombros. “Esse homem vai me enlouquecer.” E, pela primeira vez, ela se perguntou se estava ali apenas para protegê-lo… ou também para salvá-lo.






