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Capítulo 4 – Olhos de vidro

Dois dias se passaram e o tempo  todo eu estava tentando me convencer de que o melhor era manter distância de Enzo Bellini.  Nada de conversas além do necessário, respostas diretas e objetivas, encontros apenas quando absolutamente inevitáveis. Era a minha maneira de proteger o negócio… e a mim mesma. Nós precisávamos daquele investimento ou tudo estaria com os dias contados.

Mas, naquela manhã, tudo começou a sair do controle.

— Ele pediu para te ver. Particularmente. Agora. — Vanessa apareceu ao lado da minha mesa com uma xícara de café do nada com seu olhar cheio de curiosidade.

— Particularmente? — repeti, com a sobrancelha arqueada, encarando-a e fingindo que não tinha sentido um frio percorrer a espinha.

— Foi o que ele disse. Não parecia ter opção. Foi quase uma intimação.

Meu coração acelerou antes mesmo de eu levantar. Desde que ele chegou na cidade, tinha alugado um escritório no mesmo prédio da nossa empresa para acompanhar e avaliar o projeto mais de perto antes de confirmar seu investimento. Peguei minha pasta e atravessei o corredor, desci até o oitavo andar e me direcionei até a sala dele, cada passo medindo o tempo que eu queria ganhar para recuperar o fôlego.

O escritório era amplo, silencioso e imponente, com paredes de vidro que deixavam a cidade se exibir lá fora. Enzo estava de pé, próximo à janela, as mãos nos bolsos, observando o movimento lá embaixo como se tivesse todo o tempo do mundo. Quando me viu, fez um leve aceno.

— Sente-se, Luna. — A voz dele soou firme, sem espaço para qualquer tipo de contestação.

Sentei, ajeitando a saia, tentando manter o mesmo ar profissional que sempre defendi.

— A reunião é sobre o projeto? — perguntei, mantendo o tom neutro.

 Ele se aproximou, os olhos presos nos meus como se me estudasse.

— É sobre o projeto. — Pausa. — E sobre você.

Mantive o semblante profissional enquanto respondia às perguntas sobre minha trajetória, motivações e metas. Mas percebi: ele não ouvia apenas as palavras. Ele observava cada expressão, como se buscasse algo familiar.

Até que se inclinou para frente, apoiando os antebraços na mesa.

— Já nos vimos antes? — perguntou, como quem tenta capturar uma lembrança distante, apoiando a mão no queixo.

Meu coração deu um salto.

— Acho que não. — Menti sem esforço, mas o incômodo subiu na minha garganta. — Você costuma perguntar isso para todas as empreendedoras ou só para as que parecem… familiares?

Ele manteve o olhar em mim, mas algo mudou. Os músculos da mandíbula ficaram tensos, o maxilar trincado. Um breve franzir de sobrancelha denunciou o conflito interno — reconhecimento misturado à dúvida.

Era como ver alguém tentando puxar um fio de memória de um baú fechado.

— Familiar… — repetiu baixinho, quase para si mesmo.

Inclinei levemente a cabeça, segurando seu olhar.

— E se eu dissesse que a gente já se encontrou… em outra vida? — O tom foi calmo, mas carregado de intenção.

O efeito foi imediato. Os ombros dele enrijeceram, a respiração desacelerou como se tentasse processar imagens que surgiam sem aviso. O olhar, antes calculado, agora tinha uma faísca de desconforto.

Não esperei resposta. Peguei minha pasta, levantei e caminhei até a porta.

— Pense nisso, Bellini. — E saí, sem olhar para trás.

Enquanto me afastava pelo corredor, senti o peso do olhar dele nas minhas costas. E tive certeza: ele não lembrava de tudo… mas lembrava o suficiente para me temer.

—----

As reuniões seguintes seguiram um ritmo estranho, quase calculado. Sempre que podia, Enzo me chamava para conversas “rápidas” — quase nunca com a equipe presente. No início, eu me agarrava ao assunto do projeto, mantendo a conversa segura. Mas ele sempre encontrava um jeito de desviar.

— Gosta de viajar? — perguntava do nada, enquanto eu explicava uma métrica de crescimento.

 — Mora sozinha? — soltava, no meio de uma análise de orçamento.

— Quais são seus planos para os próximos anos? — insistia, com aquele olhar que parecia buscar algo que eu não queria entregar.

Respondia com frases curtas, frias, calculadas para não abrir brechas. Mas percebia — ele não estava apenas interessado no meu trabalho. Queria atravessar o muro que eu estava tentando erguer ali.

E o pior é que ele já conseguia tocar nas portas erradas.  Havia algo no tom dele, no modo como me olhava, que reacendia lembranças que lutei para enterrar durante todos esses anos: a noite em Veneza, o cheiro de vinho no ar, a pegada, o jeito que ele me preencheu e o olhar dele antes de tudo mudar.

Na sexta-feira, o dia corria bem — ou parecia. Eu estava revisando um contrato quando o celular vibrou.

Camila. Minha amiga, minha vizinha, uma das poucas pessoas que sabia quase tudo.

"Estou na porta da escola do Santino. Posso levar ele até você? Acho que vai adorar ver a mamãe no trabalho."

Meu estômago despencou. Digitei rápido:

"Não, Cami, por favor…"

Mas não houve tempo.

"Já estou subindo."

Empurrei a cadeira para trás e atravessei o corredor quase correndo. Completamente desengonçada. O salto ecoava no piso, denunciando minha pressa. Virei a esquina… e lá estavam.

Camila sorrindo, segura, como se não tivesse acabado de colocar minha vida inteira na beira de um precipício. Santino, com as bochechas coradas, ainda de uniforme, balançava o carrinho de ferro antigo que ele nunca largava.

— Luna! — Camila acenou. — Olha quem veio te buscar!

Forjei um sorriso, abaixando-me para ficar na altura do meu filho.

— Que surpresa, amor… — abracei Santino forte, segurei seu rosto com as mãos com carinho e o olhei nos olhos  — Mas a mamãe ainda precisa terminar umas coisas. Pode esperar com a tia Cami lá na recepção?

Ele fez um bico, mas assentiu. Peguei o carrinho antes que caísse no chão.

— Obrigada, Cami. Dez minutos e estou lá.

Conduzi os dois até o elevador, evitando olhares curiosos. Quando as portas se fecharam, respirei fundo. Talvez ninguém tivesse notado.

Talvez.

Voltei para a sala… e Enzo estava parado na porta de vidro, como se me esperasse. Os olhos, porém, não estavam em mim. Estavam no carrinho de ferro, esquecido sobre a mesa.

— Esqueceu isso? — perguntou, sem se mover.

— É… de um sobrinho. — enfiei o brinquedo na bolsa, controlando o sorriso.

Ele cruzou os braços, apoiando-se no batente da porta.

— Um sobrinho. — Repetiu lento, como se experimentasse o peso da palavra. — Engraçado… tem algo no jeito como você fala que não combina com a sua resposta.

— Está insinuando o quê? — perguntei, mantendo o olhar firme, mesmo com o coração acelerado.

— Estou dizendo que você reage como alguém que está escondendo alguma coisa. — A voz era baixa, mas havia algo mais — aquele mesmo desconforto de antes, como se uma memória estivesse tentando emergir.

Meu corpo ficou tenso. Não respondi. Qualquer palavra seria um convite para ele avançar. Ele me estudou por segundos que pareceram longos demais, até que um meio sorriso curvou seus lábios.

— Acho que já nos vimos em outro lugar, Luna. — disse, quase num sussurro. — E vou lembrar de onde.

Sem esperar resposta, se afastou pelo corredor. Mas eu sabia: a partir daquele instante, ele não descansaria até ter a verdade.

E a verdade… podia destruir tudo.

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