Por mais que eu tentasse seguir meu dia normalmente, o carro preto estacionado em frente ao orfanato permanecia fixo na minha mente como um alerta constante. Não era o tipo de veículo que se via por ali. Era elegante demais, escuro demais, silencioso demais. Parecia pertencer a outro mundo — um mundo que eu mal começava a compreender. — Está lá outra vez — murmurei, encostado na janela da sala de leitura, observando pela fresta da cortina. — Desde ontem à noite — respondeu Helena, cruzando os braços, também olhando de soslaio. — Alguém está nos vigiando, Arthur. Essa certeza crescia dentro de mim como uma semente de medo. Havia alguém que sabia o que eu procurava… e não gostava disso. Aquela carta não foi uma simples advertência. Era uma ameaça. E agora, esse carro... uma presença muda, constante, como um vigia das sombras. O mais difícil era tentar agir como se tudo estivesse bem. As crianças não podiam notar nada. Especialmente os pequenos, que se assustavam com facilidade. Por
A carta misteriosa que recebi na noite anterior continuava sobre minha mesa, dobrada cuidadosamente como se as palavras ali pudessem explodir a qualquer momento. Eu a relia pela quinta vez, tentando captar algo além da ameaça. Aquela frase — “Você está mais perto do que imagina. Mas cuidado: algumas heranças cobram um preço alto” — era uma faca de dois gumes. Estava perto do quê? Da verdade? Da minha família? Da ruína? Enquanto as perguntas me corroíam, o dia amanhecia com as obrigações de sempre. Helena me chamou logo cedo para ajudar com a horta. As crianças haviam plantado ervas e vegetais no mês anterior, e agora as primeiras folhas brotavam tímidas entre a terra. Estar ali, com as mãos sujas de solo e o sol morno nas costas, era uma pausa preciosa no caos. — Olha, tio! Tem tomate crescendo aqui! — gritou a pequena Clara, apontando entusiasmada. — E aqui tem cenoura! — emendou Davi, puxando as folhas com tanta força que trouxe uma cenoura minúscula, mais fina que um dedo. — Is
Fiquei parado diante da porta por longos minutos, com a fotografia nas mãos. A imagem parecia queimar meus dedos. Era como se, de repente, tudo o que eu precisava provar estivesse ali: minha mãe, comigo no colo… e Isabel, ao fundo, sorrindo com um falso ar maternal. Como alguém tão próxima à minha origem pôde me enterrar vivo num orfanato, e ainda assim manter esse retrato guardado por tantos anos? Entrei no quarto, fechei a porta com cuidado e me sentei no chão, apoiando as costas na parede. Helena se aproximou devagar, observando a foto com olhos arregalados. — Essa… é ela, não é? — perguntou, quase num sussurro. Assenti, sentindo a garganta se fechar. — E essa… é minha mãe — respondi. — Olha como ela me segura… como se estivesse feliz. Como se ainda tivesse esperanças. Helena se sentou ao meu lado, e o silêncio entre nós foi pesado, mas cheio de significado. Não precisávamos falar muito. O que eu sentia naquele momento era um misto de dor, indignação e uma faísca crescente de
Fiquei imóvel por alguns segundos, os olhos fixos na silhueta junto às árvores. A figura não se mexia, como se soubesse que eu a estava observando. O coração batia tão rápido que mal conseguia respirar. Senti uma onda gelada subir pela espinha. — Helena… — sussurrei, sem tirar os olhos da janela. — Acorda, tem alguém lá fora. Ela se virou, sonolenta, mas logo se alertou ao ver meu rosto. — Alguém? Tem certeza? — Vem ver. Ela se levantou devagar e se aproximou da janela. Mas quando olhou, a sombra já não estava mais lá. — Não tem nada… — Estava ali. Eu juro. — Talvez tenha sido um animal, Arthur. Ou sua imaginação… Neguei com a cabeça. — Não era minha imaginação. Aquilo… Aquilo me observava. Sabia que eu estava aqui. Helena pousou a mão no meu ombro. — Vem, volta a dormir. Amanhã a gente fala com a diretora, pode ser? Assenti, mesmo sem conseguir me convencer. Voltei para a cama, mas o sono não veio. Apenas fechei os olhos e me forcei a respirar fundo, como se isso pudesse
A carta tremia nas minhas mãos. A mensagem era clara, mas o significado era nebuloso. "Fique atento". Aquelas palavras ressoavam em minha mente, repetindo-se como um eco que não conseguia se dissipar. Alguém sabia que eu estava chegando perto da verdade. Mas quem? E por que esse aviso tão enigmático? Olhei para Helena, que estava sentada na cama, observando-me com uma expressão preocupada. Ela havia percebido a mudança na minha postura e agora parecia mais tensa do que antes. — O que é isso, Arthur? — ela perguntou, sua voz suave, mas carregada de uma inquietação que não poderia esconder. Eu mostrei a carta para ela, sentindo uma onda de frustração subir pela garganta. Mas, quando ela leu, seus olhos se arregalaram, e pude ver o receio crescer neles. — Isso… não parece bom. Alguém está tentando te avisar, mas não de uma forma que possa te ajudar diretamente. É uma ameaça velada. Aquelas palavras caíram como um peso sobre os meus ombros. Eu tinha quase certeza de que as pistas so
Capítulo 20 – O Despertar do Passado O vento gelado cortava a pele enquanto eu caminhava em direção à entrada do orfanato. Havia algo estranho no ar naquela manhã, um pressentimento que não conseguia identificar. Talvez fosse o peso da mudança, ou talvez o fato de eu finalmente estar começando a descobrir quem realmente era. As palavras da diretora, sua expressão sombria e fria, ainda ecoavam na minha mente. Ao entrar, um cheiro familiar de café queimado e papel velho me atingiu, fazendo meu estômago revirar. Eu sabia que nada seria mais o mesmo. Os velhos corredores, as paredes de cimento, tudo parecia tão distante agora. Eu, que sempre fui apenas "o garoto do quarto sete", agora me via como alguém com um passado, uma história que precisava ser desenterrada. As crianças estavam em seus lugares, em silêncio, como sempre. Algumas brincavam, outras estavam em seus cantos, cada uma com seus próprios sonhos e medos. Mas nada daquilo parecia importar para mim no momento. Eu estava perdi
O relógio na parede do escritório da advogada batia sem parar, cada tique-taque parecendo um lembrete constante do peso que Samuel sentia nos ombros. Era como se o tempo estivesse se arrastando, puxando-o para uma realidade que ele ainda não conseguia abraçar completamente. Ele havia enfrentado tantos obstáculos até aquele momento, mas o verdadeiro teste estava prestes a começar. Samuel observava o envelope sobre a mesa. O papel grosso e a caligrafia formal, algo tão simples e tão importante, escondiam a chave para sua liberdade. Ao abrir, seus olhos correram pelas palavras, uma a uma, até finalmente encontrarem o nome que ele buscava: Eduardo Camargo. O pai que ele nunca conheceu. O homem que, por tanto tempo, tinha sido apenas uma sombra no seu passado. "Você finalmente tem a resposta, Samuel", pensou ele, quase com um riso irônico. Mas, por mais que a verdade estivesse diante dele, ainda havia muitas perguntas sem resposta. Por que Eduardo o havia deixado no orfanato? O que real
O dia seguinte chegou com uma sensação de tensão no ar, como se Samuel estivesse prestes a dar um passo em direção a algo irreversível. Ele tinha os documentos, a confirmação do DNA, a verdade absoluta em suas mãos, mas isso não fazia com que a realidade fosse mais fácil de aceitar. A visita a Isadora, a filha de Eduardo, seria o confronto decisivo. Ele sabia que ela não teria piedade. A mulher que ele sempre soubera ser a herdeira legítima do império, aquela que nunca havia acreditado em sua existência, não estava pronta para aceitar a verdade. Ele sabia que ela provavelmente tentaria de tudo para deslegitimá-lo, para provar que ele não tinha direito algum à herança que estava à sua espera. As palavras de sua advogada ainda ecoavam em sua mente: "Isadora não vai ceder fácil. A herança de Eduardo Camargo não é algo que ela simplesmente entregará." Samuel sentia o peso da responsabilidade sobre si. Não era sobre o dinheiro ou o poder que aquela herança representava. Era sobre sua ide