2: Luna Castilho

"Ele pensa que por eu não enxergar, serei fácil de conduzir. Mas no escuro onde ele tenta me prender... eu caminho de olhos fechados. E sei exatamente onde fincar a lâmina." — Luna Castilho

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Dias atrás disseram que eu me casaria com um homem poderoso, mas não perguntaram se eu queria e sequer me deram tempo de raciocinar. Por certo supõem erroneamente que deficiência visual afeta os neurônios e o raciocínio. E como era de costume, só me jogaram a sentença como quem arremessa um animal ao matadouro.

— Seu pai quer isso, menina Luna.

Foi tudo o que eu ouvi e como uma filha obediente devo obedecer. Pois quando o meu pai quer alguma coisa… o mundo inteiro obedece sem pestanejar. Inclusive eu.

Não porque sou submissa. Mas porque sei escolher as batalhas que valem o sangue. E essa… essa exigia mais do que gritos. Exigia silêncio. Observação. Estratégia. Exigia que eu vestisse a pele da presa enquanto afiava, por dentro, os dentes da predadora.

Sou cega desde que me entendo por gente. Cresci no escuro. Literalmente. Mas o escuro me ensinou o que a luz nunca ofereceria: A escutar o mundo quando ele tenta mentir. A sentir o medo nas pausas entre as frases e a reconhecer o perigo pelo cheiro, o desejo pelo calor da pele e a mentira pelo som da respiração.

Me chamaram de frágil a vida inteira, e afirmaram que eu era feita de vidro. Mas ninguém vê o que há por dentro do vidro… E o que há aqui… é aço forjado na dor. Sou mais forte do que muitos imaginam, mas poucos conseguem enxergar além do que os olhos podem ver. Para isso precisamos ter sentimentos puros, sinceros, e principalmente, alma.

E isso é algo que eu não senti com a presença do meu futuro esposo naquele encontro onde usava meu vestido preferido de cetim da cor do céu que enxergo em minha imaginação.

A minha vida inteira fui cercada por mistérios, segredos e mentiras. Conheço o mundo através do toque e do cheiro, e o meu pai... Ele fede a medo. Um medo úmido, azedo e antigo, que ele tenta esconder com colônia cara e discursos de honra. Mas nada disso funciona comigo.

Quando me disseram que eu me casaria com Fernando Torrenegro, o nome não me causou surpresa. Eu já ouvira aquele nome sussurrado por entre portas, cuspido com medo pelos empregados e evitado por aliados. Torrenegro era uma sombra que ninguém queria nomear. Eu só não esperava que a sombra tivesse forma, peso, calor e que me tocaria de uma maneira inexplicável.

— Ele é perigoso, senhorita — sussurrou uma das criadas, enquanto me penteava o cabelo. — Mas muito bonito, e com um olhar frio. Parece carregar o inferno dentro daqueles olhos sombrios.

Perigoso, bonito e sombrio. Como o mar antes do naufrágio e uma arma apontada com calma.

Esse homem havia se tornado um enigma que eu estava com muita vontade de decifrar.

Na véspera do casamento, me deixaram trancada num quarto da casa de campo.

A porta rangeu quando se fechou, mas eu já estava habituada a isso. O som do trinco. O motor do carro se afastando. A ausência das vozes. E então… o silêncio.

Mas o silêncio, para mim, nunca é vazio.

Ele respira, mas às vezes pesa. E naquela noite, ele era denso e quente, como se as paredes transpirassem uma presença contida.

E eu sabia, eu sentia...  Ele estava ali.

Podia não ver, mas o ar denunciava. Sem falar no cheiro — um misto de couro, álcool, pólvora e algo amadeirado — grudava no fundo da garganta. Era como se o espaço tivesse sido invadido não por um corpo… mas por uma decisão.

— Está me observando? — perguntei, virando o rosto na direção certa.

Não havia medo na minha pergunta. Só a certeza de que não estava sozinha. Minha curiosidade é sempre mais forte que meu pavor, e isso, por diversas vezes, me causou muitos problemas.

O silêncio entre nós se estendeu como uma corda esticada.

Então, para a minha surpresa, a resposta veio.

— Você sempre fala com o vazio?

A voz me fez estremecer. Era baixa, rouca e arrastada, mas intensa, e me faz paralisar.

Ela não entrava pelos ouvidos... me atravessava. Senti meu estômago girar. Não por medo, mas por reconhecimento.

Fernando Torrenegro. O homem que meu pai temia e que agora seria o meu marido, meu algoz ou meu espelho.

— Só quando o vazio tem cheiro de pólvora — finalmente respondi.

Ele riu. Mas não foi um riso de verdade,

foi só o som de alguém que cansou de rir há muito tempo.

— Você é esperta.

Senti o ar mudar com a proximidade dele.

— Isso pode ser perigoso.

Ele continuou dando passos em minha direção e o calor da sua presença aumentava. Eu podia sentir a tensão vibrando entre nós como eletricidade estática. Eu não tremi, mas meu corpo inteiro estava em alerta como nunca havia acontecido. Até porque eu cresci sendo observada e subestimada. Aprendi a ser pedra por fora e faca por dentro. E não seria a presença imponente de um homem que mudaria as coisas.

— Por que está se casando comigo? — a pergunta saiu afiada.

Novamente o silêncio entre nós. Mas não era um silêncio vazio, e sim, carregado de memórias que ele não queria dividir.

Então veio a resposta.

— Porque o mundo é feito de dívidas. E você… é a moeda de um acerto antigo.

Senti as palavras como estilhaços sob a pele. Mas permaneci firme.

Não sou o tipo de mulher que chora por verdades ditas sem anestesia. Eu prefiro elas assim mesmo... Cruas, afiadas e mortais.

Sem cerimônia ele tocou o meu queixo e dessa vez eu estremeci. Seu toque foi leve demais, era como se ele estivesse me testando e querendo saber se eu quebrava em sua mão. Mas há coisas que não se quebram. Elas cortam de volta.

— Não sou seu inimigo — disse ele, com a voz rouca como lenha queimando lentamente.

Mas também não disse que era meu aliado.

E isso… isso dizia tudo.

Ele se afastou e tudo pareceu vazio.

Quando ele saiu, o quarto ficou impregnado dele. O cheiro, a presença e o som invisível da sua ausência. Era como se ele ainda estivesse ali, parado diante da porta, me vigiando sem ser visto. Fernando Torrenegro mexe comigo, mas ainda não consegui distinguir até que ponto.

Horas depois eu deitei na cama, mas não dormi. Fiquei ouvindo o som do meu próprio coração. Ele batia com força. Não de medo, mas de raiva. De uma vontade absurda de sobreviver, de lutar e de vencer a mim mesma e os meus pensamentos.

Cada batida dizia o nome dele.

...Fernando.

...Fernando.

...Fernando.

Como se meu corpo já estivesse se preparando para o impacto.

— Amanhã serei sua esposa. Uma esposa cega, mas não tola — murmuro para mim mesma.

Ele pensa que vai me conduzir como uma marionete muda e uma peça de xadrez sacrificável, mas não sabe que eu sou o tabuleiro, e que às vezes, a rainha mais silenciosa é a que dá o xeque-mate.

Eu não fui criada para ser flor em vitrine, e ser moldada. Me tornei quem sou no escuro, na pressão e na mentira. Se Fernando Torrenegro pretende me usar como isca para alcançar seus objetivos obscuros, que tome cuidado. Porque até o peixe mais dócil tem espinhos. E às vezes… o anzol se parte antes da linha.

Ainda não sei quem ele é de verdade, mas sinto que há um monstro em sua pele. E algo ainda mais perigoso por baixo dela: Um homem que sangra. Que hesita. Que já foi ferido — talvez do mesmo jeito que eu.

Mas isso não muda nada. Não vou me distrair com rachaduras e mem com sombras de humanidade. Até porque a minha sobrevivência depende de manter os olhos fechados — e todos os outros sentidos bem abertos.

Se ele pensa que sou um peão cego, vai descobrir que estou jogando outro jogo que ele não conhece. Porque nesse… quem domina o escuro, reina.  E aprendi que às vezes… é no escuro que a caça vira caçadora.

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