Eu não deveria ter voltado.
A frase ainda está nos meus lábios quando o chão range sob meus pés, como se a casa desse um passo comigo. O salão dos retratos é um corredor de julgamentos. Linhas de rostos pintados em óleo me medem de cima abaixo, uns com pena, outros com fome. O espelho oval repousa liso outra vez, sem o tremor líquido que me engoliu há pouco, mas o frio que ficou na pele diz que a memória não terminou: ela apenas aprendeu a esperar. Viro as costas para o espelho e avanço pela galeria. A luz do fim da tarde b**e nos vitrais e derrama no chão faixas prateadas, como se alguém tivesse estendido lençóis de lua para cobrir a vergonha da família. Paro diante do retrato de um casal do início do século XIX — moldura oval, dourado discreto, o homem com a mão no ombro da mulher velada. Mais cedo, juro que vi uma fenda atravessando o peito de Lucien. Agora, a pintura está inteira, mas há uma novidade que não existia quando eu era criança: a mulher não olha mais para ele. Olha para mim. — Você também cansou dos homens que escolhem mal? — pergunto, baixa, e o vento me responde do fundo do corredor, carregando o perfume de rosa antiga que a casa insiste em usar para falar comigo. — Falando sozinha, Lívia? Pisco forte. Adrien. Suas passadas vêm do lado oposto, cadenciadas, firmes. Ele para a dois passos de mim, a sombra sobrepondo a minha, o cheiro amadeirado antecedendo a voz. — Às vezes a única pessoa que não mente para mim sou eu — respondo, sem virar. — E mesmo assim, metade do tempo, eu finjo acreditar. — O advogado me mandou a minuta da coabitação — ele diz, prático, como quem quer segurar a rédea da cena. — “Convivência harmônica” significa aparições públicas quinzenais, jantares com testemunhas e… — ele hesita, e o silêncio tem gosto de ferro — …um quarto principal ocupado pelo casal. Eu rio sem humor. — Então o velho fez questão da crueldade completa. — Podemos adaptar — Adrien rebate, os olhos no retrato, não em mim. — Dois quartos, portas abertas para as câmeras verem quando for necessário. Nada… íntimo. A palavra cai entre nós como faca. — Nada íntimo — repito, e as paredes parecem retesar as tábuas. Ele finalmente me encara. O cinza dos olhos dele hoje está mais escuro, como se a chuva dos últimos anos tivesse decidido morar ali. E é nesse olhar que eu me pergunto se ele não está exausto. Não só de mim, nem só do testamento, exausto de carregar um nome que pesa mais do que o corpo. — Você está pálida — ele diz, com aquela voz que fere quando tenta cuidar. — Quer sentar?— Não quero nada que venha de você.
O silêncio que se segue não é vazio. É uma sala cheia de coisas quebradas, à espera do dono decidir se varre ou se se corta nelas. Antes que uma resposta qualquer apareça, um estalo alto nos interrompe. O retrato acima de nós vibra, a moldura treme, e então, como se alguém invisível tivesse cortado o fio, ele despenca da parede. Eu avanço um passo; Adrien me puxa pela cintura num reflexo antigo, e a tela passa por nós num sopro, estilhaçando o vidro no chão. Me vejo presa nos braços dele um segundo comprido demais, o calor da mão na minha pele, o rosto tão perto que o passado volta como um crime. Eu me solto brusca, o coração escorrendo por dentro, e me agacho para examinar a obra. O pano cedeu com um rasgo limpo em diagonal, de ombro a ombro, exatamente onde um coração não pintado gravitaria. — Isso não caiu do nada. — Eu sei — Adrien concorda, a voz mais baixa do que deveria. Ele se abaixa comigo. — Olha isso. No verso da tela, alguém desenhou, em carvão recente, o símbolo que nos persegue: a rosa atravessada pela adaga. Só que… há letras minúsculas sob o talo, como assinaturas: L e A. Minha garganta fecha. — Temos que isolar a galeria, verificar pegadas, impressões… — Você acha mesmo que a polícia consegue coletar digitais de fantasmas? — Eu coleto digitais de gente — ele rebate, impaciente. — E gente mexe com quadros. — Gente, sim. Mas… — aponto para o risco. — Quem assina um crime com as nossas iniciais ou quer nos incriminar, ou quer nos acordar. Adrien fecha a expressão como quem escolhe não sangrar na frente do inimigo. — A casa é velha, Lívia. Milionária e elegante, porém muito antiga. — Antiga demais para brincar de coincidência. Recolho um caco de vidro. É pesado, muito mais do que deveria ser. No reflexo afiado, eu me vejo partida em cinco. No sexto, percebo um detalhe que me derruba: na película prateada da lâmina estilhaçada, um filete escuro corre como se o espelho estivesse… chorando. Levo a ponta do dedo ao líquido. Cheiro. Ferro. — Sangue? — Adrien pergunta. — Estranho demais. Talvez seja mesmo melhor chamar a polícia. Um passo ecoa ao fundo. Não é vento. É salto alto medindo território como uma advogada mediria um réu. Selene surge na entrada da galeria, impecável como sempre, uma rosa pálida presa ao cabelo, como se a cor ousasse existir junto dela. — Que tragédia — diz, teatral, olhando para a tela no chão. — O patrimônio Valenhart tem sofrido tanto ultimamente… quase tanto quanto a reputação da família. — Você não foi convidada — digo, seca. — Fui pelo testamento — ela sorri, angelical. — Supervisora da Fundação, lembra? Estou aqui para garantir que o “amor harmônico” seja… veiculado corretamente. A imprensa adora uma história de ex que reaprende a amar. A palavra ex arranha meu ouvido. Tenho vontade de rir de tão absurdo. Em vez disso, me levanto e enfrento a mulher que um dia foi minha amiga, a que sussurrou promessas como quem acaricia uma cobra. — Você sabia da cláusula, Selene? — Todos sabiam — ela responde, olhos brilhando. — Menos você, aparentemente. Uma pena. Você sempre odiou ser a última a saber. — Que azar o meu. Ela inclina a cabeça, satisfeita por me ver afiada. Sabe que o jogo só é bom quando há sangue. — Adoraria continuar — Selene murmura —, mas vim apenas avisar: amanhã à noite haverá um jantar “íntimo” com alguns patronos. Fotografias incluídas. Vestidos longos favorecem. Sorrisos também. — Vá embora, Selene — Insisto. — Hoje, não. Ela o olha com uma doçura que só machuca quando já estamos cortados. — Você ainda acha que manda aqui. Ninguém te contou? Eu também moro na mansão. Achou que seria um reencontro de pombinhos? — E, antes de se virar, lança uma última gota de veneno: — Cuidado com esse quadro. Há coisas que quebram e não se consertam. Outras, quando consertadas, voltam piores. Quando ela some no corredor, deixamos a porta engolir o perfume caro. O silêncio volta com forma de garra. — Ela sabia da queda. Apareceu como se estivesse só esperando. — Selene não é santa, mas não é uma assassina, Lívia. — É claro que você ia defendê-la. — provoco. — Você guarda raiva demais. — Você não? Ele me encara de cima abaixo, depois se volta para o quadro. — Isso não vem ao caso agora. Juntos, viramos a tela para examinar o chassi. Pregos novos, madeira trocada. Alguém mexeu nesse quadro recentemente. O carimbo no verso confirma: restauro parcial – 3 meses atrás. Engulo seco. — Quem autorizou restaurar isso? — pergunto. — Não fui eu — ele diz. — E não há qualquer ordem no arquivo. — Isso significa que temos um restaurador fantasma. — Ou alguém pagou por fora. — Tia Helen. Ele suspira. — Possível. — Selene. — Provável. Ficamos uma eternidade curtos de ar, ajoelhados diante de um cadáver de pintura que respira mais do que muitos vivos que conheço. Então, com cuidado, ele recolhe a moldura enquanto eu, de luvas, junto os cacos maiores. Quando deposito o último sobre a mesa, algo raspa por baixo, um som fino, quase metálico. Há um duplo fundo no tampo. Bato de leve com o nó do dedo. Oco. — Ouviu? — sussurro. Adrien pega um canivete do bolso, velho hábito de quem aprendeu a sobreviver onde todos querem te ver cair, e desliza a lâmina pela ranhura quase invisível. A madeira cede. Dentro do compartimento, um envelope de cera negra, pequeno, muito pequeno, repousa como um coração roubado. O selo é diferente dos outros: a rosa e a adaga estão invertidas, e sob elas… as mesmas letras minúsculas: L e A. — Carta? — ele pergunta, e a pergunta treme. — Acho que sim. — Minhas mãos não tremem. Não diante de papel. Papéis são mais honestos do que gente. Quebro o lacre. Um cheiro de cera fria sobe como um lamento. O bilhete dentro é curto, mais curto do que qualquer carta de Henri seria. A caligrafia é firme, mas não é a do patriarca.“Aquilo que foi arrancado do coração volta pelo sangue.
Não testem o abismo.”— Não é do meu avô — Adrien diz, tocando a margem, sem encostar na tinta. — É de alguém que… conhece o pacto.
— É de quem o criou — respondo, o estômago em espiral. — La Dame Noire? — ele arrisca, e o nome deixa o ar mais pesado. — Ou de quem se acha no direito de falar por ela. A lâmpada no teto pisca. Uma corrente de ar atravessa a galeria e apaga duas velas. O perfume de rosa aumenta, e com ele, a sensação de que há olhos onde não há rostos. — Vamos sair daqui — Adrien diz, a mão na minha cintura de novo, e eu não protesto. Caminhamos lado a lado até a porta. Antes de atravessar o umbral, olho por cima do ombro. O retrato no chão devolve, pelo vidro quebrado, a imagem de um casal que não somos nós, mas poderíamos ser: ele inclinado, a mão estendida, ela com o véu cobrindo metade do rosto. No reflexo distorcido, os dois sorriem. Tão diferentes de nós. Meu avô e o avô de Henri eram primos. Nós dois somos parentes bem distantes. Fomos criados separados e nos encontramos na adolescência, depois que meu avô morreu e precisei voltar para cá. Nós dois nos apaixonamos à primeira vista. Aperto o peito e me afasto dele, preciso manter o máximo de distância possível. Repenso sobre a ideia de ir embora. Mas ir embora seria desistir da herança. Mais do que isso, ir embora seria desistir de me vingar.