Leonardo
Encontrei a casa em silêncio ao voltar naquela noite. Mais silenciosa do que o habitual. Nenhum som de passos, nenhum ruído vindo do andar de cima. Nem a TV ligada, nem o tilintar da louça. Era como se o tempo tivesse parado por algumas horas ali dentro. Passei pela sala de estar, nada. Biblioteca, nada. Jardim, vazio. Meu maxilar travou. Subi as escadas com passos firmes, guiado por um incômodo que não fazia sentido. Eu não era um homem que se preocupava com ninguém. Mas alguma coisa me dizia que aquele silêncio… não era natural. A porta do quarto dela estava entreaberta. Bati duas vezes, como exigia a etiqueta que aprendi desde garoto — mesmo que aquela situação estivesse muito além da etiqueta. — Isadora? Nada. Empurrei a porta com cuidado. Ela estava sentada no chão, ao lado da cama, abraçando uma peça de roupa que reconheci imediatamente. Um velho casaco de seu pai, o mesmo que ele sempre usava nos dias frios aqui em casa. Os olhos dela estavam vermelhos, mas secos. O rosto pálido. O corpo curvado de uma forma quase protetora, como se estivesse tentando se esconder do mundo inteiro — inclusive de mim. Por um instante, não soube o que fazer. — Você está bem? — perguntei, mantendo o tom mais baixo do que o habitual. Ela não respondeu. Me aproximei devagar. Sentei na beirada da cama, perto o suficiente para observá-la sem invadir completamente seu espaço. — Sabe… eu perdi minha mãe quando tinha vinte e dois. Achei que ia desmoronar, mas continuei andando. Fingindo que nada tinha mudado. Às vezes, parecer forte é só uma forma de pedir socorro em silêncio. Ela virou o rosto devagar. O olhar estava perdido, mas fixo em mim. — Eu não quero parecer forte — disse, por fim. — Eu só não sei mais como ser fraca. As palavras caíram como chumbo. Me atingiram em cheio. Eu sempre vi Isadora como uma ameaça ao meu controle, à minha rotina. Mas, ali, ajoelhada no chão com o casaco do pai nos braços, ela era apenas… uma filha sem chão. — Você pode sentir, Isadora. Pode quebrar. Aqui dentro, ninguém vai te julgar por isso. — E o senhor? Vai me consolar? — Não. Eu não sou bom nisso. Mas posso… ficar. Ela suspirou, fechando os olhos. — Ele sempre falava que o senhor era um homem solitário. Eu nunca entendi o porquê. Agora eu entendo. O senhor tem medo de sentir qualquer coisa, não é? Fiquei em silêncio. Ela continuou: — Medo de sofrer. De se apegar. Medo de perder o controle. Só que a vida não se importa com isso, Leonardo. Ela arranca as pessoas da gente mesmo quando a gente se blinda. Ela encostou a cabeça na lateral da cama, sem soltar o casaco. Uma lágrima solitária escorreu pela lateral do rosto. A primeira. — Ele me deixou. Eu fiquei sozinha. — Não está mais — falei, antes que pudesse me impedir. A frase saiu. E ficou ali, entre nós dois. Carregada de promessas que eu não tinha intenção de cumprir… mas também não podia mais negar. Ela não respondeu. Fechou os olhos. E, pela primeira vez, eu desejei ter aprendido a confortar alguém. Porque tudo que eu queria, naquele momento, era puxá-la para mim. E dizer que, se dependesse de mim… ninguém mais a deixaria. Nunca mais. Não sei quanto tempo fiquei ali sentado, observando Isadora adormecer lentamente. Seus olhos foram se fechando aos poucos, o rosto levemente inclinado para o travesseiro, os traços serenos, apesar da dor evidente que ela carregava no olhar minutos antes. Esperei até ter certeza de que dormia, então me levantei com cautela. Peguei o cobertor, cobri seu corpo com um cuidado que nem eu sabia ainda possuir, e saí do quarto. Fechei a porta sem fazer ruído. No corredor, respirei fundo. Estava tenso. Meus punhos estavam cerrados. O maxilar, travado. Aquilo não podia estar acontecendo. Eu não podia permitir. Ela tem dezenove anos. Essa frase martelava na minha cabeça como um lembrete sujo e necessário. Era isso que me impedia de ceder, de agir, de sequer admitir para mim mesmo o que estava sentindo. O que sentia por ela não era paternal. Isso era o mais perturbador. Isadora despertava em mim algo que nenhuma mulher, em toda minha vida, tinha sido capaz de provocar. Era um desejo silencioso, corrosivo. E eu odiava isso. Entrei no meu quarto e fui direto para o banheiro. Tirei a camisa com raiva, como se o tecido fosse o culpado por minha inquietação. Liguei a água fria do chuveiro. Queria apagar o calor. Queria voltar a ser o homem impenetrável de antes. O que não se deixava afetar. O que não fraquejava. Mas era tarde. Ela já tinha entrado em mim. E quanto mais eu lutava, mais ela se fazia presente. No dia seguinte, pela manhã, encontrei-a na cozinha. Estava de costas, preparando café. Usava uma calça larga e camiseta de algodão, simples. O cabelo preso num coque alto. Nada chamativo. E, mesmo assim… me tirava o ar. Ela virou-se ao notar minha presença. — Bom dia — disse, num tom leve, ainda um pouco sonolento. — Dormiu bem? — Sim… obrigada por ontem. Eu… — Não precisa agradecer — cortei, pegando minha xícara com rigidez. Ela se calou. Sabia que minha voz havia endurecido de propósito. E mesmo assim não respondeu. Talvez estivesse tentando entender. Talvez achasse que eu era apenas grosseiro. Indiferente. Era melhor assim. — Já organizou seus documentos da faculdade? — perguntei, retomando o tom prático. — Ainda não. Preciso ligar para a instituição. — Faça isso hoje. E se precisar de algo, fale com Marcos. — Certo. Silêncio. Apenas o som da chaleira ao fundo. Ela me olhou de lado, como quem espera algo. Mas eu não ofereci nada. Nem conforto. Nem abertura. Muito menos qualquer indício do que estava se passando dentro de mim. Ela desviou o olhar primeiro, e então continuou a mexer no café. Meus olhos caíram sobre a linha fina da sua nuca, exposta pelo coque. Desviei o olhar imediatamente. Aquilo não podia continuar. Peguei minha pasta, a chave do carro e saí da cozinha sem mais palavras. Na empresa, fui mais duro que o normal com os funcionários. Irritadiço. Impaciente. Qualquer erro me servia de desculpa para descontar a tensão acumulada. No fundo, eu sabia o porquê. Aquela garota estava me dominando por dentro. E eu odiava isso mais do que qualquer fraqueza que já experimentei. Aos 45 anos, eu sabia tudo o que um homem precisava saber sobre desejo. Já tive dezenas de mulheres, affairs curtos, relacionamentos calculados. Mas nunca… nunca alguém me desequilibrou como ela. O pior era saber que ela sequer desconfiava. Ela não fazia ideia de que, quando passava por mim com os pés descalços e os olhos cansados, meu corpo inteiro respondia. Que bastava uma frase dita com aquele tom doce e juvenil para o meu sangue ferver. Mas eu não demonstraria. Eu era Leonardo Ferraz. E não me permitia fraquezas. À noite, quando voltei, a casa estava escura. Apenas a luz da biblioteca acesa. Passei por ali por impulso. Ela estava sentada no chão, cercada por livros. Ao me ver, levantou-se. — Estava tentando achar alguma coisa para ler. Me distraí. — Escolha o que quiser. Desde que devolva no lugar correto. — Tudo bem. Ficamos em silêncio. Os olhos dela tentavam encontrar os meus, mas eu evitava. Mantenha a distância. Mantenha a linha. Ela fechou o livro, mas hesitou antes de sair da sala. — Leonardo… posso te perguntar uma coisa? — Sim. — Você sempre foi assim? — Assim como? — Frio. A pergunta ficou no ar. Minha resposta veio rápida. Curta. Cruel. — Sempre fui direto. Quem interpreta como frieza, não me conhece o suficiente. Ela assentiu com a cabeça, em silêncio. Depois disse: — Então talvez ninguém te conheça de verdade. E saiu. Fiquei parado, imóvel, por longos segundos. Ela tinha razão. Ninguém me conhecia. Nem eu. Porque eu jamais imaginei… que uma garota de dezenove anos, enlutada e silenciosa, seria a única a fazer meu mundo balançar. E, ainda assim, eu faria o possível para esconder isso. Nem ela — nem ninguém — vai descobrir o que está acontecendo comigo. Porque se ela soubesse… talvez não se sentisse segura nesta casa. E o que menos quero agora… é que ela vá embora.