ALGUMAS SEMANAS ANTES...
Victória Passaredo
A vida nunca foi fácil para quase ninguém, mas a minha ficou ainda mais complicada quando meu pai faleceu e minha mãe decidiu voltar para sua cidade natal com meus irmãos. Apesar de eu ter nascido no Rio, toda a minha família é de lá. O custo de vida em onde minha mãe nasceu seria muito menor do que no caríssimo Rio de Janeiro.
Eu, no entanto, resolvi ficar. Aqui estava construindo minha vida. Minha mãe não gostou da ideia de me deixar sozinha na segunda maior metrópole do país, mas acabou concordando. Ela sabia o quanto eu estava focada em me organizar financeiramente e que não me deixaria dominar pelas futilidades da vida. É claro que se divertir faz parte e é saudável, mas não do jeito que Sirley e Brenda faziam.
Meus amigos saíam quase todo santo dia. Sirley, que puxava plantão comigo no hospital, parecia ter energia infinita: passava a madrugada na pista e ainda enfrentava 24 horas seguidas de trabalho. Brenda não trabalhava; estudava Direito na PUC Rio, em tempo integral. Família rica bancando tudo, e a única preocupação dela era tirar boas notas.
Por isso, ela tinha a audácia de me acordar ao meio-dia de um sábado, quando eu tinha ido dormir às sete da manhã.
— Sabia que um ser humano precisa de pelo menos seis horas de sono? — resmunguei, com a voz arrastada.
Brenda fez um muxoxo. — Para de drama. Você dormiu cinco. Depois dorme mais.
— Ah, claro, simples assim... — respondi, irritada. — O que você quer, sua chata?
— Sirley ofereceu o apartamento dele pra gente. Ele morava com o namorado, mas o boy voltou para Santa Catarina.
— O apê dele é ótimo, mas isso vai estourar o orçamento. — deixei claro.
— Quase nada! Só cento e oitenta reais a mais. E a gente vai morar em Copacabana!
— Pra você, “só” cento e oitenta a mais é nada. Pra mim é muito. Além disso, não vejo vantagem em sair da Tijuca pra Copa. A única vantagem é o apê ser excelente.
— Para de história, Vic! Você vive reclamando que, nos jogos do Mengão, o bairro vira um caos. — Brenda contestou.
— E quando tiver evento em Copa, também vou reclamar. Sem contar o verão carioca lotando a praia e as ruas. Mas, o principal: eu não posso pagar a mais.
— Eu pago. Esse valor eu gasto num balde de seis brejas importadas.
— Não seria justo.
— Seria sim, orgulhosa. Eu quero me mudar. Vai ficar mais perto do hospital. Diz que sim!
— Vou pensar. — Brenda deu um gritinho, me beijou na bochecha e sorriu satisfeita.
— Ah, tem mais uma coisinha... — disse, antes que eu voltasse a dormir. — Hoje é dia de baile Levíssimo lá no Morrão. O Sirley pediu pra te lembrar.
— Eu sei, sua mala. Prometi que iria conhecer, mesmo sem a mínima vontade de curtir festa em favela.
— Esse seu preconceito vai acabar. O baile Levíssimo é maravilhoso, e cheio de cara gato.
— Tá bom... duvido muito, mas vou. Agora sai daqui! — me enfiei debaixo do edredom. — queria dormir mais um pouco.
(...)
Mais tarde, já pronta para ir ao tal baile Levíssimo, fui julgada por Sirley assim que apareci na sala.
— Ah não, Mona! No baile de favela tem que chegar lacrando! Não pode ir vestida como quem acabou de sair do convento. — Ele me olhou dos pés à cabeça, com as mãos na cintura.
— O que tem de errado com minha roupa? — segurei a saia do vestido.
— Nada, Vic, você tá linda! — Brenda tentou me defender.
— Linda, mas com roupa de virgem beata. — Sirley sorriu malicioso.
— Você é uma bicha má, Sirley. — Brenda falou em tom de riso.
— Só estou sendo sincera, Mona. Não combina com o lugar.
— Então não vou. — Cruzei os braços.
Brenda interveio: — Ai, deixa ela, Sirley! Daqui a pouco a Vic desiste.
E ele finalmente entendeu que eu não iria vestida diferente do que sou.
(...)
O funk era algo ao qual eu estava me acostumando. A batida era viciante, fazia o coração bater junto com as caixas de som potentes. O problema eram as letras, muitas vezes vulgares. Ainda assim, o ambiente tinha seu charme: luzes coloridas cortando a noite, gente dançando com óculos escuros, moda estranha para a madrugada.
Sirley ia abrindo caminho, Brenda vinha no meio, e eu fechava o trio. Procurávamos um canto para ficar e, perto do bar, era perfeito para meus amigos biriteiros. Eles sabiam todos os passinhos, eu preferia dançar discretamente, sem travar, mas sem exagerar.
Ao lado, um grupo de meninas que não passavam dos treze anos, de shortinhos, saltos altos e garrafas de ice na mão. Apesar da simpatia delas, aquilo me doía: via rapazes as tratando como mulheres feitas, mas, para mim, continuavam sendo crianças. No hospital, eu via demais meninas como elas com complicações no parto, corpos ainda frágeis para gerar uma vida.
Em certo momento, fiquei sozinha com elas. Brenda foi ao banheiro e Sirley sumiu atrás de um boyzinho. Eu, então, fiquei de vigia do balde de bebidas, dançando com as garotas e até me arriscando no “quadradinho”.
— Tu é muito engraçada! — disse uma delas, negra, olhos castanhos expressivos e trança afro loira.
— Por que acha isso? — perguntei.
— Sei lá! Tu chega aqui vestida pra ir na missa e começa a rebolar direitinho. Tá ligada?
Sorri, prestes a responder, quando um homem corpulento, tatuado, de jeans e colete aberto, surgiu e puxou a menina. O olhar dela mudou para puro pavor. Ninguém fez nada.
— Toma conta da bebida — pedi às outras duas. — Vou ajudar.
— Tá louca? Isso é problema com MJ! — alertaram, como se fosse um nome que eu devesse temer.
Mas minha consciência não me deixava ficar parada. Segui o caminho por onde eles foram, até uma grade afastada. Provavelmente entraram num beco. Rezei para encontrá-los.
E encontrei. Ele apontava o dedo para ela, encurralando-a contra a parede. Quando a sacudiu pelos braços, me aproximei.
— Talvez exista um jeito melhor de resolver isso — falei.
Ele não olhou para trás, mas sua voz grave ecoou: — Na moral, mete o pé.
— É melhor você ir — sussurrou a menina, trêmula.
— Não. Prometi à sua mãe que te deixaria em casa. — Inventei, tentando ganhar tempo.
A garota arregalou os olhos. — Não, Maicon Jhequison! — implorou, agarrando o colete dele.
Ele se virou. Pele morena dourada, olhos castanhos claros, boca carnuda e uma beleza perigosa. “Tão bonito e papa-anjo”, pensei.
— Então a loiruda conhece a mãe dela? — estreitou os olhos.
— Conhecer, conhecer... não. Mas prometi que cuidaria dela.
— Ele é meu irmão, sua doida! — a menina explodiu. — Agora vai embora!
— Irmão?! Meu Deus, desculpa... — comecei, constrangida.
Ele soltou um meio sorriso. — Gostei da sua coragem.
Conversamos por alguns minutos E até esqueci que eu fui para ali em prol de proteger uma menina. Pintou um clima gostoso entre a gente que só foi quebrada pelo som estridente.
Meu celular tocou. Brenda, aflita, dizia que Diana — a tal irmã dele — estava de volta.
— Vou lá pegar ela e levar pra casa — disse MJ.
— Fica um pouco com a gente... — arrisquei.
— Na moral, não é boa ideia.
— Só um pouco. — Sorri, e ele retribuiu.
— Tu é engraçada pra caralho. — E, de repente, ele segurou meu braço, deslizando a mão até entrelaçar os dedos nos meus. Um arrepio subiu pela minha pele.
— Quer saber se pode continuar segurando minha mão? — provoquei.
— Isso nem é atrevimento, se a mina quer... — murmurou, puxando-me para mais perto. Seus olhos desceram para minha boca, e eu soube que queria o mesmo que ele.
O sorriso dele ficou mais torto, mais perigoso. — Isso aqui nem é atrevimento... se a mina quer. — repetiu.
Não me deu tempo para responder.
Puxou-me de um jeito que fez meu corpo colar no dele. O cheiro de pele quente, perfume amadeirado e um toque de suor tomou meus sentidos. O olhar dele baixou para minha boca, e minha respiração ficou curta.
Ele se inclinou, lento, como se saboreasse cada centímetro da aproximação. O nariz roçou o meu, e o calor da respiração dele tocou meus lábios antes do beijo.
Quando aconteceu, foi firme, faminto, urgente.
A parede gelada estava às minhas costas, e o corpo dele me prendia ali, esmagando cada espaço entre nós. O beijo tinha gosto de perigo e promessa. A mão dele deslizou para minha cintura, apertando, guiando, como se dissesse que, ali, eu era dele.
No fundo, eu sabia: estava beijando um desconhecido, no meio de uma viela, em uma das favelas mais perigosas do Rio.
E, ainda assim... eu não queria parar.
Naquela noite, eu enlouqueci.