MJ…
Calça branca de brim impecável, camisa jeans de manga média, alguns botões abertos de propósito para dar aquele ar de malandro estiloso. Na cabeça, um chapéu de aba curta, adornado com uma faixa verde, representando com orgulho a cor da minha escola. A quadra de samba Faz Quem Pode sempre foi meu território, o meu templo. Era onde eu mais me encontrava comigo mesmo, onde eu podia ser de verdade quem eu era. Ali também estavam as lembranças mais preciosas, talvez os melhores momentos que já vivi, especialmente ao lado da minha rainha. O tráfico me dar poder. Dinheiro para comprar o que eu quisesse, respeito e medo na mesma medida. Mas a música… a música me completava de um jeito que o crime nunca conseguiria. Era ela que me mantinha humano. No meu mundo, não existe retorno. Uma vez dentro, a porta se fecha. Não que eu quisesse sair dele, mas eu queria equilíbrio. Queria, pelo menos por algumas horas, ser só eu, sem o peso do apelido que carregava. Para o Quenedi, meu irmão, isso era pura loucura. Ele sempre foi a minha âncora, o cara que me puxava de volta para o chão quando eu começava a flutuar nos meus sonhos. Muitas vezes ele conseguia. No fundo, eu sabia que ele estava certo. Mas tinha dias que eu não queria ouvir, que eu queria mandar tudo para o inferno, chutar o balde e viver como se não houvesse amanhã. Eu já esperava. Quando abri a porta do quarto, lá estava ele. Quenedi já tinha incorporado o personagem que mais gostava de interpretar: meu general, meu guarda-costas pessoal. Postura rígida, cara fechada, sobrancelhas arqueadas. Ele nem precisou entrar — ficou parado na soleira, bloqueando a passagem com aquele olhar inquisidor que antecedia sermão. — Aí, na moral! — começou, cuspindo as palavras com irritação. — Me contaram a situação e eu não acreditei… Tu vai continuar se arriscando e indo nessa porra? Poderia simplesmente mandar ele enfiar a língua no cu e sair andando, mas eu dei trela. — Caralho, mano! Tu é chato pra cacete. Meu samba passou pros dez finalistas e hoje pode ficar entre os três da próxima etapa. Eu não perco isso por nada. — Maicon… — ele me cortou, a voz pesada. — Tudo que esses caras querem é te pegar desprevenido. Tu é o dono dessa porra toda! Tu é o MJ, caralho! Não dá pra ficar brincando de sambinha com a porra da guarda abaixada. Tem jornalista lá na quadra… daqui a pouco tua cara tá estampada em tudo quanto é canto. Eu dei um sorriso torto. — É, irmão… tu acabou de dizer uma parada importante. — Ele relaxou um pouco, achando que eu ia concordar. — Sou dono dessa porra toda. Então não se mete na minha vida… e sai da minha frente. Peguei o cavaquinho e dei-lhe um empurrão leve no ombro para abrir passagem. — Ao menos leva escolta, Maicon — insistiu. Parei, olhei por cima do ombro e respondi: — Quem precisa de escolta é o MJ. Hoje… eu sou o Maicon Jhequison. — Tá com a cabeça cheia de merda se acha que pode viver duas vidas — ele rebateu, tenso. — Num fode, Quenedi! — soltei, batendo a porta com força e seguindo para a quadra verde e branca. Mesmo sabendo, lá no fundo, que ele estava mais do que certo. (...) Victória Passaredo… Confesso que gostei do tal “baile de favela” que o Sirley me levou. Ele tinha me explicado que aquele era light, diferente dos mais pesados que rolam em algumas comunidades. O mais incômodo ali era a marola constante, a fumaça da erva era tão forte que dava para ficar chapada só respirando. Mas aqui… aqui, na quadra de samba da Faz Quem Pode, eu me encontrei de verdade. Sambar? Sou um desastre. Mas isso não me impede de me apaixonar pelo espetáculo que se desenrola à minha volta. Verde e branco dominam o espaço, reluzindo sob o brilho dos refletores. Mulheres, em sua maioria negras, altas, corpos esculturais, deslizando em trocas de pernas ao som da b**eria, que b**e junto com o nosso coração. Sandálias de salto altíssimo, corpos erguidos, movimentos precisos. Sambar é uma arte… e aqui, cada passo é poesia. Os homens também não ficavam atrás. Misturavam samba e frevo com uma energia quase impossível de acompanhar. Ao contrário do bailão, o público não era só jovem. Tinha de tudo, crianças, adolescentes, casais, senhores, senhoras. O meu coração sorriu quando vi, à direita, uma velhinha de uns oitenta anos se acabando no samba, rodando a saia como se fosse menina outra vez. — Vic, não vai ficar toda dura, paradona aí, né? — Sirley falou no meu ouvido. — Eu até gostaria de dançar… mas não sei sambar. Não quero pagar mico igual à Brenda. Tá todo mundo olhando pra ela. — E a mona tá achando que tá abafando. Eu disse que ela tá parecendo que tá matando barata… não quis me ouvir. — Você é mau! — Só fui sincero. Não precisa sambar como a Brenda, mas pode levantar os dedinhos e balançar o quadril. — É… isso eu posso. — Resolvi seguir o conselho. Ele tinha razão, mas também não estava muito melhor. Se Brenda parecia matar barata, Sirley sambando parecia uma lacraia eletrocutada. E eu lá, no meio deles, a diferentona, tentando passar despercebida. Alguns minutos depois, arrisquei uns passos. Leve, sem exagero. Sou do tipo que acredita que menos é mais. As meninas pré-adolescentes que conhecemos no outro dia apareceram, até mesmo a irmã do Maicon. — E aí, maluca! — ela me cumprimentou com um soquinho. — Quero te agradecer por ter deixado o Maicon calmo aquele dia lá no bailão. — Não fiz nada. — respondi sorrindo — Não fez?! Tu é doidona mermo… não tem ideia do quanto se arriscou. Diana balançou a cabeça e mudou de assunto. — Fugiu hoje de novo? —perguntei — Não. Hoje foi o próprio Maicon que trouxe a gente. — Ah, é? E onde ele tá? Ela abriu um sorriso malicioso… e, no mesmo instante, senti um sopro quente no meu pescoço. Um arrepio percorreu minha pele. — Ele tá bem atrás de você. Me virei e dei de cara com aquele sorriso largo, em contraste com a pele negra. — Oi, Loiruda… queria mesmo te ver.