Chiara Rossi atravessou a fita amarela, o ar gelado da madrugada nova-iorquina mordendo sua pele exposta. Eram 04h35 da manhã. O som de seus sapatos de sola de borracha era abafado pela fina camada de gelo que cobria o asfalto. Era uma hora em que a cidade ainda dormia, e o silêncio da rua era quebrado apenas pelo som sibilante do vento, que chicoteava e balançava a fita amarela da cena do crime, e pelo lampejo incessante das luzes vermelhas e azuis das viaturas. O bairro nobre do Upper East Side, que normalmente exalava um ar de tranquilidade e exclusividade, parecia um palco sinistro para a tragédia que se desenrolava.
Não havia a multidão curiosa que geralmente se aglomerava nas cenas de crime. Apenas alguns policiais de patrulha, um fotógrafo da perícia e a equipe forense, que se moviam com a precisão profissional de um balé macabro. A quietude da madrugada amplificava a seriedade do crime. Chiara ignorou a todos, seu olhar fixo naquilo que realmente importava.
Seu parceiro, o Detetive Mason, a esperava, com o casaco abotoado até o pescoço e a cara fechada. Ele não precisava falar. O olhar dele já dizia tudo.
— Adivinha, Detetive — Mason disse, a voz abafada pelo frio. — É nosso.
Chiara acenou com a cabeça. Seus olhos castanho-esverdeados já escaneavam o local. Ela viu o corpo, deitado sobre o asfalto, ao lado de um Audi Q8 preto, estacionado de forma tão perfeita que parecia estar ali por acidente. O contraste entre o luxo do carro e o sangue no chão era gritante. A cena era quase artística, com o corpo da vítima perfeitamente enquadrado pela luz fria dos postes.
Ela se aproximou, seus passos lentos e deliberados, quase imperceptíveis na quietude da madrugada. O corpo era de um homem, de cerca de cinquenta e poucos anos, deitado de bruços. O casaco de grife ensopado, não de chuva, mas de um líquido escuro e espesso que se estendia ao redor dele como uma auréola macabra.
— Múltiplos tiros de grosso calibre. A equipe forense já confirmou. Pelo menos cinco. — Mason disse.
Chiara se ajoelhou a alguns metros do corpo, não para tocá-lo, mas para observá-lo. As costas do homem, visíveis onde a camisa social estava rasgada pelos projéteis, mostravam mais do que apenas os orifícios de bala. Havia hematomas escuros, já inchados e de cores diversas, sugerindo um espancamento severo antes da morte. As mãos do homem, visíveis sob o corpo, estavam impecavelmente limpas, sem cortes ou arranhões.
— Ele não tentou se proteger — Chiara disse, mais para si mesma do que para o parceiro. A ausência de marcas de defesa nas mãos era um fato incomum. Um sinal.
— Não parece. O cara estava indefeso ou nem viu. O legista acha que ele estava com as mãos amarradas, ou simplesmente aceitou o destino — respondeu Mason.
Chiara se levantou e olhou ao redor, buscando o elemento que faltava. O rosto da vítima estava pressionado contra o asfalto, impossibilitando a identificação imediata, mas a ausência de uma carteira ou celular no local era gritante. Um crime de roubo, um latrocínio, teria deixado a cena mais caótica, com sinais de luta. Isso era limpo. Profissional. A mensagem era o crime em si.
Ela olhou para os poucos civis na área: uma mulher com um cachorro, enrolada em um casaco de lã, e um zelador que varria uma calçada de frente. Ela precisava de testemunhas, alguém que pudesse ter visto algo.
Chiara se aproximou da mulher.
— Bom dia, senhora. Viu ou ouviu algo na noite passada? — perguntou, a voz calma.
— Ouvi uns estampidos, sim. Mas achei que fossem o motor de algum carro — disse a mulher, a voz fina e melindrosa. — Foi por volta da meia-noite. Eu estava tirando meu cachorro para fazer suas necessidades.
— Ouviu algo mais? Alguma voz, algum carro saindo do local, gritos?
— Não… nada. Só os estampidos e o silêncio. Foi uma noite estranhamente silenciosa. Não vi ninguém.
Chiara suspirou. Testemunhas inúteis, mais preocupadas com a futilidade da vida em bairros como aquele do que com a vida de um homem. A detetive não esperava mais, e já sentia o ar pesado de futilidade.
Ela notou a ausência de testemunhas que, em condições normais, estariam presentes e em grande quantidade. O fato da rua estar vazia na hora do crime e ninguém ter visto nada, só dava mais força para a ideia de um crime profissional.
Chiara voltou para a cena do crime e processou tudo. A frieza do crime era calculada. O corpo estava de bruços, dificultando a identificação, a violência era um aviso, e a falta de testemunhas, por mais que houvesse pessoas por perto, era a prova da eficácia e discrição dos criminosos. Isso não era trabalho de amadores. Era a assinatura de uma organização.
A detetive se inclinou para perto do corpo, notando algo que escapou à primeira vista: um pequeno símbolo gravado na parte interna do colarinho do casaco do homem. Era sutil, quase invisível, mas o símbolo era familiar. Ela o reconheceu de um caso antigo, de um livro sobre crimes não solucionados que ela havia lido no ano anterior.
Um arrepio percorreu a espinha de Chiara, não por causa do crime, mas pela sensação de que estava sendo observada. Seu olhar varreu a rua, buscando a origem daquela sensação. A massa de curiosos que começava a se aproximar pouco a pouco, a fita amarela, os carros de patrulha. Nada fora do normal. Exceto por um detalhe.
A uns cinquenta metros dali, na esquina, um grupo de cinco homens se destacava. Eles não pareciam estar ali para ver o show. Eram homens grandes e bem vestidos, com sobretudos de lã escura, elegantes demais para o frio da madrugada. Não conversavam entre si, apenas olhavam para a cena do crime. Cada um deles fumava um cigarro, o que era estranho para o horário. Um deles, em particular, um homem alto e de ombros largos, parecia o líder do grupo. Seus olhos verdes, incrivelmente claros, fixos na direção da detetive. Eles não se mexiam, nem se escondiam. Apenas observavam.
A sensação de ser observada se intensificou, tornando-se quase palpável. Era como se aqueles olhos pudessem ler sua mente, seu corpo, sua alma. Era uma presença forte, esmagadora. E o homem a encarou de volta, um predador observando sua presa. Havia um sorriso de canto de boca, uma quase imperceptível elevação nos lábios, um movimento que denotava arrogância, poder e ironia. O homem soltou uma baforada de fumaça e a observou se espalhar no ar. Ele parecia se divertir.
Chiara sentiu um arrepio. Ela não sabia quem ele era, mas o instinto profissional, afiado por anos de experiência, gritou um nome: Perigo. O homem era o oposto do predador que se esconde: ele se revelava. Seus olhos verdes eram um aviso, um desafio. A presença dele era um comando, uma assinatura que lhe dizia, em um silêncio eloquente: "Eu estou aqui, e a partir de agora, o seu trabalho é meu, e eu estou te observando."
A detetive sustentou o olhar, sua mandíbula se apertando. Ela sabia que a partir daquele momento, sua vida seria mais difícil. Aquele homem a via, e de alguma forma, ela sabia que ele estava se divertindo. Ele era a representação do lado sombrio da lei, a contraparte de sua própria existência. E por mais que tentasse, ela não conseguia desviar o olhar, presa a uma tensão perigosa, invisível, mas tão real quanto o corpo ensanguentado a seus pés. O jogo havia começado.