A chuva caía fina sobre os jardins da mansão Morelli.
Tudo nela era controlado: os portões, os passos, até a forma como a água escorria pelas janelas pareciam seguir um protocolo de silêncio.
Exceto eu.
Naquela manhã, eu estava no terraço com uma xícara de café amargo, usando um robe de seda preta que não era meu — claro, nada ali era.
Observava os homens da segurança fazerem a ronda com seus rádios discretos e armas mais discretas ainda.
Eu era uma prisioneira de luxo.
E pior: com o sobrenome do meu inimigo gravado no dedo.
— Acordada cedo — a voz grave de Dante me fez virar.
Ele estava sem paletó, mangas dobradas, um leve vinco de cansaço entre as sobrancelhas.
Ainda assim, impecável.Assustadoramente... bonito.
— Não sabia que espiões dormiam.
Ele não sorriu.
— Me disseram que recusou o vestido da festa de hoje.
— Não gosto de vermelho. Me lembra sangue.
Ele se aproximou, parando ao meu lado, os olhos perdidos no horizonte da propriedade.
— Vermelho é o que mantém essa casa de pé.
— E o que manchou minha vida.
Por um segundo, o silêncio pareceu pesar mais que a chuva.
— Meu irmão morreu sangrando no chão de um galpão, Dante. E você mandou. Como espera que eu vista vermelho e brinde a sua vitória?
Ele não respondeu de imediato.
Pegou a xícara da minha mão, provou o café.
— Amargo. Como você.
— Não tente me entender — rebati. — Eu não sou sua.
Ele largou a xícara e virou o rosto em minha direção.
— Ah, Serena… isso é o que você diz agora.
Antes que eu respondesse, Lorenzo apareceu na porta de vidro com expressão preocupada.
— Don Morelli… precisamos conversar. Agora.
A sala de reuniões no subsolo da mansão era um labirinto de espelhos e pedra escura.
Uma mesa longa separava Dante de seus homens.
Eu deveria ter ficado no andar de cima.
Mas alguma coisa me fez descer.
Talvez o instinto.
Ou o fato de que, no fundo, eu sabia que aquela guerra ainda não tinha acabado.
— Enviaram uma mensagem — Lorenzo informou, deslizando um envelope pardo sobre a mesa. — Direto da fronteira com Cosenza.
Dante pegou o envelope, abriu com calma cirúrgica.
Retirou uma única foto.
Seu maxilar endureceu.
— O que foi? — perguntei, sem conseguir conter.
Ele virou a foto para mim.
Era o retrato do nosso casamento...
Com a palavra “TRAIDOR” rabiscada em vermelho sobre o rosto dele.
E uma bala colada na moldura da imagem.
Um recado.
— Acha que foi minha família? — perguntei, ríspida.
Ele balançou a cabeça.
— Isso não é estilo De Santis. É pessoal.
Alguém quer nos separar... antes que fiquemos perigosos juntos.
Soltei uma risada amarga.
— E quem disse que seremos “juntos” alguma coisa?
Dante se levantou.
— A partir de agora, você não sai da mansão sem minha ordem.
— Desculpe… você acha que pode me dar ordens?
Ele caminhou até mim devagar.
A sala estava cheia de homens armados, mas naquele momento… só existíamos nós dois.
— Serena… alguém lá fora quer você morta.
E, contra minha própria vontade, eu não quero que isso aconteça.
Senti meu corpo inteiro reagir.
Medo? Desejo? Raiva?
— Por quê? — sussurrei. — Por honra? Por ego?
Ele parou a centímetros.
— Porque… a única pessoa que pode destruir você… sou eu.
Naquela noite, a mansão estava em alerta.
Dobro de seguranças.
Cortinas fechadas.
E um silêncio que gritava.
Fui até o salão vazio. Um piano antigo ocupava o canto.
Meus dedos tocaram as teclas com suavidade, como se buscassem refúgio em notas que não feriam.
Toquei uma canção triste.
Uma que Luca costumava cantar pra mim.
— Você toca bem — ouvi atrás de mim.
— E você espiona bem.
Dante estava encostado no batente, braços cruzados.
— Essa música… — ele começou, mas parou.
— O que?
— Minha mãe costumava cantar para mim quando eu era criança.
— Então temos algo em comum — murmurei. — Mulheres que amavam homens impossíveis.
Ele caminhou até mim, sentando-se ao meu lado no banco do piano.
— Você não sabe o que ela passou.
— E você não sabe o que eu passei — respondi.
Silêncio.
— Diga, Dante… você se arrepende de alguma das mortes que ordenou?
Ele não respondeu.
Mas seus olhos… seus olhos diziam tudo.
Havia fantasmas demais ali.
— Talvez — disse ele, enfim. — Mas nunca publicamente.
O piano ainda vibrava com o último acorde.
— Você vai me beijar algum dia? — perguntei de repente.
Não sei de onde veio a pergunta. Talvez da raiva.
Ou da vontade de destruir tudo.
Ele me olhou.
Com tanta intensidade que doeu.
— O beijo que eu te der, Serena… não será por contrato.
Vai ser quando você me implorar por ele.
Levantei-me com o coração batendo como um tambor.
— Então prepare-se para morrer esperando.
De volta ao quarto, fechei a porta com força.
Mas não dormi.
Porque, pela primeira vez desde a morte de Luca…
Eu sentia medo.Não dele.
De mim mesma.
Do que, no fundo, eu começava a querer.
E o que acontece quando a vingança começa a se parecer com desejo?
Só o inferno poderia responder.