Capítulo 3 - Farsa por um Fio

O impacto das minhas palavras – "Ele é meu namorado!" – pairou no ar. O cano da arma do meu pai não se moveu, mas seus olhos frios estreitaram-se, varrendo a cena. Percebi então a mudança crucial no homem que abraçava com força desesperada.

Suas mãos, que instantes antes me imobilizavam brutalmente contra a porta, relaxaram. Seus braços agora me envolviam, puxando-me contra seu corpo quente e trêmulo. Sua cabeça enterrava-se entre meus seios, como uma criança assustada. Senti sua respiração ofegante na minha pele. Quando olhei para baixo, meus olhos violeta colidiram com os dele.

Ainda vermelhos como brasas, o pânico cego dera lugar a algo profundo, vertiginoso. Pupilas negras e dilatadas fixavam-se em mim com intensidade sufocante. Havia reconhecimento, desejo cru e primitivo. E, Deus me perdoe, naquele caos mortal, achei aquilo perigosamente sexy.

— Namorado? — A voz do meu pai cortou o ar, plana, desprovida de inflexão. Baixou a arma, mas não a guardou. — Não lembro de ser apresentado. Nem de saber que você tinha alguém, Elysa.

Puxei o homem – meu "namorado" – comigo, afastando-nos da porta, entrando no pequeno quarto. Precisava de espaço, de ar, mas ele veio grudado, como uma sombra. Dirigimo-nos à única poltrona do quarto, uma peça velha e desgastada. Sentei-me, quase caindo, as pernas bambas. E ele… ele simplesmente se acomodou no chão, aos meus pés, encostando a cabeça no meu joelho, envolvendo minhas pernas com os braços como um gato grande e possessivo. Seus olhos vermelhos, com aquelas pupilas dilatadas e hipnóticas, nunca se desgrudaram do meu rosto. O olhar era agora de uma devoção perturbadora, cheio de um amor e um desejo que não podiam ser reais, mas que queimavam como fogo. Era assustador. Era intoxicante.

— É… é recente, pai — comecei, a voz trêmula. Tentei afastar o calor que subia pelo meu pescoço. — Muito recente. Conheci… conheci o… o… — Travei. Qual era o nome dele? meus olhos vagaram pelo cômodo parando no romance ao lado da cama que eu estava lendo pra ele.

— … conheci o Leo — Leo. Sim, o nome do protagonista. — Ele… ele é de fora. Aconteceu… naturalmente. — Cada palavra era um tijolo na parede da mentira, e eu sentia o peso aumentando.

Para meu espanto absoluto, porém, e para o dele, parecia que ambos – o pai desconfiado e o amnésico possessivo – acreditavam naquela farsa. O homem aos meus pés anuia levemente com a cabeça quando eu mencionava detalhes inventados, como se estivesse recordando. Era bizarro.

— E você, Leo — o pai voltou-se diretamente para ele, a voz uma lâmina. — O que faz? De onde veio exatamente?

Meu coração parou. "Ele não sabe! Ele não lembra de nada!" Preparei-me para intervir, para inventar outra camada de ficção. Mas antes que eu pudesse abrir a boca, o homem encostado no meu joelho falou. A voz era rouca, ainda fraca, mas surpreendentemente clara.

— Motoqueiro… — ele murmurou, os olhos fixos em algum ponto distante, como se visse fragmentos. — Viajava… longas estradas. Sem destino fixo. — Era exatamente o que eu deduzira pelas roupas. Como ele sabia? Ou… ou estava repetindo o

o que ouvira enquanto dormia?

O pai arquivou a informação com um leve aceno. — E como conheceu minha filha? — A pergunta era um teste, direto ao ponto fraco da minha narrativa frágil.

Novo pânico. Mas o homem olhou para mim, seus olhos vermelhos cheios de uma confiança que me aterrorizou.

— Na floresta… — ele disse, devagar, escolhendo as palavras como se fossem cacos de vidro. — Ela… salvou-me. Trouxe-me para este… santuário. — Santuário. A palavra que eu usara tantas vezes, lendo ao lado da cama dele, descrevendo a casa. Ele estava repetindo minhas palavras, minhas descrições, como se fossem suas próprias memórias. Era a amnésia trabalhando de uma forma perversamente conveniente e aterrorizante.

Meu pai pareceu ponderar. O olhar dele perdeu um pouco do gelo, substituído por uma curiosidade calculista. Então, veio a pergunta que me fez desejar sumir pelo assoalho.

— E intimidades? — ele perguntou, brutalmente direto, os olhos cravados em Leo, ignorando completamente meu rubor instantâneo e ardente.

Quase engasguei com minha própria saliva. "Pai, pelo amor de Deus!" Mas Leo, aquele homem que minutos antes tentava me estrangular, olhou para o meu pai com uma serenidade perturbadora. Um leve sorriso tocou seus lábios, um sorriso íntimo, cheio de uma nostalgia que ele não poderia ter.

— No tapete… — ele murmurou, a voz mais suave, quase um sussurro carregado. — Diante da lareira fria… sob as estrelas pintadas no teto alto… Ela tremia como uma folha… mas era… magnífica. — Cada palavra era uma facada de vergonha. Era a cena que eu descrevera dias antes, lendo um trecho particularmente intenso de um romance +18 que encontrara numa pilha. Eu queria que a terra me engolisse. Meu rosto estava em chamas.

Meu pai, no entanto, pareceu… satisfeito? Não com os detalhes, mas com a convicção na voz de Leo, com a aparente intimidade do relato. Um brilho perverso de aprovação passou por seus olhos. Ele finalmente guardou a arma no coldre sob o paletó.

— Bem — ele disse, o tom ainda seco, mas menos ameaçador. — Parece que minha Elysa encontrou um… companheiro peculiar. — Seu olhar varreu Leo, depois a mim, demorando-se na minha expressão provavelmente aterrorizada e escarlate. — Não posso ficar. Tenho negócios urgentes na cidade. Ficarei no Hotel Central. — Ele olhou diretamente para mim. — Espero vê-los novamente antes de partir. Os dois. Com mais… calma.

Caminhamos até a porta principal, os três. Eu, cambaleando, minhas pernas feitas de geléia, o choque, a vergonha e o absurdo da situação minando qualquer força que me restasse. Leo, ainda agarrado ao meu braço, sua presença quente e constante, seus olhos vermelhos observando cada movimento do meu pai com desconfiança latente. Meu pai parou no limiar, a floresta noturna atrás dele um manto escuro.

— Até breve, Elysa. Leo. — O nome inventado soou estranho e perigoso na sua boca.

Mal a porta se fechou, minhas pernas cederam. Afundei, deslizando pela madeira. Antes que minha cabeça atingisse o chão, braços fortes me envolveram. Leo levantou-me como se eu não pesasse nada. Meu corpo encaixou-se contra o dele. Ele cheirava a suor, sangue velho e algo selvagem.

Ficou parado no corredor, segurando-me contra seu peito. Seus olhos fitavam os meus com intensidade sufocante. Confusão, fragmentos, dependência… e algo mais.

— Eu te amo.

O mundo parou. Três palavras lançadas como declaração de posse. De um homem que não sabia seu nome, que absorvera minhas leituras como verdade. Fiquei imóvel, choque paralisante.

Lá fora, no carro preto, meu pai ligou o motor. Tirou um telefone antiquado. Discou.

— É o Velho. Preciso de tudo. Sobre um homem. Nome provável: Leo. Vou enviar uma imagem. Antecedentes. Conexões. Movimentos. Tudo! Pra ontem.

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