Capítulo 2 - Namorado em coma

Horas depois, a ambulância rural, uma van adaptada, parava novamente diante do chalé de madeira escura. Com a ajuda do motorista e do auxiliar, a maca com o homem em coma foi cuidadosamente transportada para dentro, atravessando a porta pesada que separava o mundo das sombras e dos rumores do meu mundo de papel e silêncio. Instalamos-no num quarto pequeno no térreo, perto da cozinha, que tinha uma cama estreita. Montamos o soro, a bomba de nutrição, os aparelhos simples para monitorar os sinais vitais que Carla emprestara.

Quando a ambulância partiu, levando o barulho do motor e as últimas palavras de encorajamento, o silêncio da floresta e da casa desceu sobre mim como um cobertor pesado. Fiquei na porta, observando as luzes traseiras desaparecerem na estrada escura.

Voltei para dentro, fechei a porta maciça com um baque surdo que ecoou nas estantes. O ar cheirava a couro, camomila, desinfetante hospitalar e uma nova presença estranha, metálica, de sangue e suor seco.

Caminhei até a porta do quarto improvisado. O homem estava lá, imóvel sob o cobertor, o soro gotejando lentamente no cateter, o som monótono do monitor cardíaco preenchendo o silêncio. Seus cabelos escuros contrastavam com o travesseiro branco. Mesmo em coma, havia uma força perturbadora nele, uma pergunta gigantesca pairando naquele corpo silencioso.

Olhei para as estantes que engoliam as paredes, para as sombras familiares nos cantos, para as passagens secretas que só eu conhecia. Meu santuário. Meu labirinto.

Agora, dividido com um estranho que trazia o cheiro do perigo e o peso de um segredo sangrento da estrada deserta.

O mês que se seguiu foi tecido de silêncio e palavras. Minha casa, antes um refúgio solitário, agora abrigava duas respirações: a minha e a dele. As manhãs começavam com o ritual: verificar sinais vitais, trocar o soro, alimentá-lo pela sonda. Depois, sentava ao lado da cama estreita e abria um livro.

— Os amantes se perderam no tapete, diante da lareira fria, sob as estrelas pintadas no teto... Ela tremia como uma folha, mas era magnífica. — Fechei o livro abruptamente. — Isso é indecente, desculpe por isso.

Lia em voz alta, na tentativa de preencher o silêncio. Mas aos poucos, as histórias dos livros se misturaram às minhas.

— Por que não conversamos um pouco? sabe... Minha mãe adorava esta casa. Vivemos aqui só nós duas, até ela morrer. Depois, meu pai me levou para a cidade. Brigávamos o tempo todo. Era frio. Controlador. Até que ... — Brinquei com o livro entre os dedos. — Voltei pra cá. Confesso , aqui pode ser bem solitário às vezes e livros são minha paz frágil.

Silêncio... no fundo eu queria uma companhia, e eu precisava admitir tê-lo alí aplacava um pouco a minha depressão.

— Você deve ser um motoqueiro viajante, né? Sem destino fixo, só estradas longas...— Toquei o couro gasto de sua jaqueta. — Te encontrei na floresta, quase morto. Trouxe você pra meu santuário. Quando acordar eu tenho tantas perguntas pra você. — continuei — Alias, já te contei? Tem passagens secretas por toda a casa. Descobri a maioria, mas algumas ainda me escapam. — Baixei a voz. — Nunca vou te contar onde ficam. Vai que você me mata enquanto durmo.

No dia seguinte acordei e fui até a garagem. A moto ficou esquecida num canto, como um monstro ferido de metal torto e pneu murcho, olhei a moto com confiança. Separei as ferramentas, comprei as peças na cidade numa rápida viagem de táxi, e mergulhei no conserto. O cheiro de graxa e óleo substituiu o de couro e camomila por algumas horas. O trabalho manual, o desafio mecânico, foi uma terapia inesperada. Quando finalmente apertei o último parafuso e dei a chave, o ronco do motor explodindo na garagem foi um grito de vitória. Um sorriso genuíno, raro, esticou meus lábios. A liberdade sobre duas rodas estava de volta.

Fiz um pequeno passeio triunfal ao redor da casa, testando as marchas, sentindo o vento no rosto. A floresta parecia menos ameaçadora sob a luz do sol. Estacionei de novo, o coração mais leve do que em semanas. Subi as escadas espirais que levavam ao meu quarto, planejando um banho longo e quente para lavar a graxa e a tensão acumulada. Tirei a blusa suja, já pensando na água corrente…

O soro.

A lembrança bateu como um soco. A bolsa estava quase vazia; precisava trocar antes do banho. Vesti uma camiseta limpa rapidamente e desci as escadas, os pés descalços fazendo pouco barulho no assoalho de madeira antiga.

Abri a porta do quarto dele, já me preparando para a tarefa rápida.

A cama estava vazia.

O cobertor caído no chão. O soro, desconectado, pingando uma mancha úmida no piso de madeira. Um arrepio percorreu minha espinha como uma agulha gelada. Antes que meu cérebro pudesse processar, uma sombra se moveu ao lado da porta, oculta por uma estante alta.

Ele não veio como um furacão.

Ele surgiu — silencioso como um pensamento sombrio, preciso como uma lâmina. As mãos firmes agarraram meus braços com uma força impessoal, quase cirúrgica. Fui empurrada contra a porta com brutalidade. O ar escapou dos meus pulmões, mas não houve caos. Apenas o peso do controle absoluto. O rosto dele estava a centímetros do meu. Os olhos — Deus aqueles olhos! Vermelhos como sangue — não tremiam de medo, mas de algo pior: uma calma antinatural, vazia de emoção.

A respiração era rasa, mas ritmada. O cabelo escuro caía sobre a testa úmida, desalinhado de forma quase elegante.

— Quem é você? — A voz dele era baixa, quase sem inflexão, mas o timbre era cortante. — Onde eu tô? E quem sou eu?

Os dedos se cravaram na minha pele como se estivessem avaliando minha estrutura, minha resistência. A dor foi afiada. E ainda assim, os olhos dele não perdiam o foco. Não era um homem em pânico. Era um predador desorientado, e eu sua possível presa.

Meu coração batia tão alto que ecoava nos meus ouvidos. A enfermeira em mim tentou ressurgir — racional, calma.

— Calma… — murmurei, a voz trêmula. — Você está seguro… Eu… Eu te encontrei… ferido…

As palavras escorregaram como vidro molhado.

— Quem sou eu? — Ele repetiu, mas eu não fazia ideia.

Foi nesse silêncio sufocado, nesse encontro de olhos — o vermelho opaco dele nos meus violeta dilatados —, que a porta da frente da casa se abriu com um rangido lento e arrastado.

Passos rápidos e decididos ecoaram no corredor, pesados demais para serem ignorados. O homem à minha frente congelou — como um cão de caça que escuta outro predador se aproximando. A porta do quarto estava entreaberta.

Meu pai apareceu.

O tempo pareceu estalar. Ele estava mais velho, mais magro, mas os olhos eram os mesmos. Frios. Táticos. Como lentes de uma mira ajustada ao longo de décadas. Ao ver a cena — o homem me prensando contra a porta —, algo se acendeu nele.

Minha garganta secou. Não.

Foi um movimento fluido. A mão mergulhou sob o paletó alinhado e voltou com uma pistola discreta, preta, um prolongamento do próprio braço. O cano apontou direto para a cabeça do homem, sem hesitação.

— Solta ela. Agora. — A voz do meu pai era um fio de gelo. Sussurrada. Mortal.

Fragmentos de lembrança se remecheram dentro de mim. Sarah. A rua molhada. O beco. O corpo caído. O cheiro de pólvora e sangue. O silêncio depois do tiro. O rosto dela. A verdade que me separou do meu pai como uma fenda irreparável: ele não era apenas frio, mas líder de uma organização criminosa.

A mente se apagou.

Torci meu corpo, e em vez de escapar, me joguei para frente, envolvendo o homem com os braços, como um escudo invertido. Segurei sua cabeça contra o meu peito. O cheiro metálico — sangue, talvez o dele — invadiu minhas narinas.

Ele não reagiu. Ficou rígido, analisando. Como se estivesse processando o porquê daquele gesto e como poderia usá-lo.

Olhei por cima do ombro, direto para a arma, para os olhos de gelo do meu pai. Encarei. Implorei. Menti.

— Tá tudo bem, pai! — minha voz saiu aguda, forçada, tremendo entre a coragem e o medo. Apertei o homem, fingindo um gesto íntimo, como se fosse um namorado pego de surpresa. Os olhos dele, tão frios quanto os de meu pai, não desviaram dos meus. Observavam.

— Ele é meu namorado.

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