Capítulo 2 - Namorado em coma

​Pus o pé na porta do quarto improvisado e o coração se apertou. Ele estava lá, imóvel sob o cobertor, como uma escultura de gesso. O soro gotejava no cateter, um som pequeno e constante que parecia a contagem regressiva da minha sanidade. O monitor cardíaco piscava, uma luz vermelha fria, o único sinal de que aquele corpo silencioso abrigava vida.

​Meu santuário. Meu labirinto de livros, agora profanado por um estranho que trazia o cheiro do perigo e o peso de um segredo sangrento vindo da estrada.

​O mês que se seguiu foi uma dança entre o silêncio e as palavras. Minha casa, antes um refúgio solitário, agora tinha duas respirações: a minha, sempre ansiosa, e a dele, tão serena e profunda. As manhãs começavam com o ritual sagrado de cuidar: verificar seus sinais vitais, trocar o soro, alimentá-lo pela sonda. Depois, sentava ao seu lado, na beira da cama estreita, e abria um livro.

​— Os amantes se perderam no tapete, diante da lareira fria, sob as estrelas pintadas no teto... Ela tremia como uma folha, mas era magnífica. — Fechei o livro, de repente constrangida. — Isso é indecente, desculpe por isso.

​Lia em voz alta para preencher o vazio, mas aos poucos as histórias dos livros se misturaram às minhas. Eu falava com ele como se ele pudesse me ouvir, me entender, me responder. Era loucura, eu sabia, mas a solidão é uma fera traiçoeira.

​— Sabe… minha mãe adorava esta casa. Vivemos aqui só nós duas, até ela morrer. — Senti um nó na garganta. — Depois, meu pai me levou para a cidade. Brigávamos o tempo todo. Ele era frio, controlador... — Brinquei com o livro entre os dedos. — Até que voltei pra cá. Aqui é meu porto seguro… mas às vezes, confesso, pode ser bem solitário. Os livros são a minha paz frágil. E eu… — A confissão veio em um sussurro, uma verdade que eu mal ousava admitir para mim mesma. — Eu acho que queria uma companhia. Você, de certa forma, aplacou um pouco a minha depressão.

​A sala estava em silêncio, exceto pelo bip do monitor.

​— Você deve ser um motoqueiro viajante, não é? Sem destino fixo, só estradas longas… — Toquei o couro gasto de sua jaqueta, que ainda estava na poltrona. — Te encontrei na floresta, quase morto. Eu te trouxe para o meu santuário. Quando você acordar, eu tenho tantas perguntas pra você! — continuei, a voz mais animada. — Ah, eu já te contei? Tem passagens secretas por toda a casa. Descobri a maioria, mas algumas ainda me escapam. — Me inclinei, baixando a voz como se contasse um segredo. — Nunca vou te contar onde ficam. Vai que você me mata enquanto durmo.

​A risada nervosa morreu na minha garganta. O homem, alheio a tudo, permaneceu em coma.

​Na manhã seguinte, a garagem me chamou. A moto estava esquecida num canto, como um monstro ferido. Olhei para o metal torto, os pneus murchos, e um sorriso de confiança se formou. Separei as ferramentas, comprei as peças na cidade numa rápida viagem de táxi, e mergulhei no conserto. O cheiro de graxa e óleo substituiu o de couro e camomila, e o trabalho manual foi uma terapia inesperada. Quando finalmente dei a chave, o ronco do motor explodiu na garagem como um grito de vitória. Um sorriso genuíno, raro, esticou meus lábios. A liberdade sobre duas rodas estava de volta.

​Fiz um pequeno passeio triunfal ao redor da casa, sentindo o vento no rosto e o coração mais leve do que em semanas. Estacionei de novo e subi as escadas em espiral, sonhando com um banho quente. Tirei a blusa suja, já pensando na água.

​O soro. A lembrança bateu como um soco. A bolsa estava quase vazia.

​Vesti uma camiseta limpa rapidamente e desci as escadas. Abri a porta do quarto, já me preparando para a tarefa.

​A cama estava vazia. O cobertor, no chão. O soro, desconectado, pingando uma mancha escura. Um arrepio frio percorreu minha espinha. Antes que meu cérebro pudesse processar, uma sombra se moveu ao lado da porta, oculta por uma estante alta.

​Ele não veio como um furacão. Ele surgiu — silencioso como um pensamento sombrio, preciso como uma lâmina. As mãos firmes agarraram meus braços com uma força impessoal, quase cirúrgica. Fui empurrada contra a porta com brutalidade. O ar escapou dos meus pulmões, mas não houve caos. Apenas o peso de um controle absoluto. O rosto dele estava a centímetros do meu. Os olhos — oh, aqueles olhos! Vermelhos como sangue — não tremiam de medo, mas de algo pior: uma calma antinatural, vazia de emoção.

​A respiração era rasa, mas ritmada. O cabelo escuro caía sobre a testa úmida, um desalinho quase elegante.

​— Quem é você? — A voz dele era baixa, sem inflexão, mas o timbre era cortante, afiado. — Onde eu estou? E quem sou eu?

​Os dedos se cravaram na minha pele como se estivessem avaliando minha estrutura, minha resistência. A dor foi aguda. Mas os olhos dele não perdiam o foco. Ele não era um homem em pânico. Era um predador desorientado, e eu, sua presa. Meu coração batia tão forte que ecoava nos meus ouvidos. Tentei ser a enfermeira — racional, calma.

​— Calma… — murmurei, a voz trêmula. — Você está seguro… Eu te encontrei… ferido…

​As palavras escorregaram, sem sentido.

​— Quem sou eu? — Ele repetiu, mas eu não fazia ideia.

​Foi nesse silêncio sufocado, nesse encontro de olhos — o vermelho opaco dele nos meus violeta dilatados —, que a porta da frente da casa se abriu com um rangido lento e assustador.

​Passos pesados e decididos ecoaram no corredor. O homem à minha frente congelou. Ele era como um cão de caça que escuta outro predador se aproximando.

​Meu pai apareceu.

​O tempo pareceu estalar. Ele estava mais velho, mais magro, mas os olhos eram os mesmos. Frios. Táticos. Ao ver a cena — o homem me prensando contra a porta —, algo se acendeu nele. Um movimento fluido. A mão mergulhou sob o paletó alinhado e voltou com uma pistola discreta, preta, um prolongamento do próprio braço. O cano apontou direto para a cabeça do homem, sem hesitação.

​— Solta ela. Agora. — A voz do meu pai era um fio de gelo. Sussurrada. Mortal.

​Fragmentos de lembrança se remexeram dentro de mim. Sarah. A rua molhada. O beco. O corpo caído. O cheiro de pólvora e sangue. O silêncio depois do tiro. O rosto dela. A verdade que me separou do meu pai como uma fenda irreparável: ele não era apenas frio. Era um assassino.

​Minha mente se apagou.

​Numa fração de segundo, torci meu corpo e me joguei para frente, envolvendo o homem com os braços, como um escudo invertido. Segurei a cabeça dele contra o meu peito. O cheiro metálico, sangue, invadiu minhas narinas.

​Ele não reagiu. Ficou rígido, analisando. Como se estivesse processando o porquê daquele gesto e como poderia usá-lo. Olhei por cima do ombro, direto para a arma, para os olhos de gelo do meu pai. Encarei. Implorei. Menti.

​— Está tudo bem, pai! — minha voz saiu aguda, forçada, tremendo entre a coragem e o medo. Apertei o homem, fingindo um gesto íntimo, como se fosse um namorado pego de surpresa. Os olhos dele, tão frios quanto os de meu pai, não desviaram dos meus. Eles observavam, calculavam.

​— Ele é meu namorado.

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