Pus o pé na porta do quarto improvisado e o coração se apertou. Ele estava lá, imóvel sob o cobertor, como uma escultura de gesso. O soro gotejava no cateter, um som pequeno e constante que parecia a contagem regressiva da minha sanidade. O monitor cardíaco piscava, uma luz vermelha fria, o único sinal de que aquele corpo silencioso abrigava vida. Meu santuário. Meu labirinto de livros, agora profanado por um estranho que trazia o cheiro do perigo e o peso de um segredo sangrento vindo da estrada. O mês que se seguiu foi uma dança entre o silêncio e as palavras. Minha casa, antes um refúgio solitário, agora tinha duas respirações: a minha, sempre ansiosa, e a dele, tão serena e profunda. As manhãs começavam com o ritual sagrado de cuidar: verificar seus sinais vitais, trocar o soro, alimentá-lo pela sonda. Depois, sentava ao seu lado, na beira da cama estreita, e abria um livro. — Os amantes se perderam no tapete, diante da lareira fria, sob as estrelas pintadas no teto... Ela tremia como uma folha, mas era magnífica. — Fechei o livro, de repente constrangida. — Isso é indecente, desculpe por isso. Lia em voz alta para preencher o vazio, mas aos poucos as histórias dos livros se misturaram às minhas. Eu falava com ele como se ele pudesse me ouvir, me entender, me responder. Era loucura, eu sabia, mas a solidão é uma fera traiçoeira. — Sabe… minha mãe adorava esta casa. Vivemos aqui só nós duas, até ela morrer. — Senti um nó na garganta. — Depois, meu pai me levou para a cidade. Brigávamos o tempo todo. Ele era frio, controlador... — Brinquei com o livro entre os dedos. — Até que voltei pra cá. Aqui é meu porto seguro… mas às vezes, confesso, pode ser bem solitário. Os livros são a minha paz frágil. E eu… — A confissão veio em um sussurro, uma verdade que eu mal ousava admitir para mim mesma. — Eu acho que queria uma companhia. Você, de certa forma, aplacou um pouco a minha depressão. A sala estava em silêncio, exceto pelo bip do monitor. — Você deve ser um motoqueiro viajante, não é? Sem destino fixo, só estradas longas… — Toquei o couro gasto de sua jaqueta, que ainda estava na poltrona. — Te encontrei na floresta, quase morto. Eu te trouxe para o meu santuário. Quando você acordar, eu tenho tantas perguntas pra você! — continuei, a voz mais animada. — Ah, eu já te contei? Tem passagens secretas por toda a casa. Descobri a maioria, mas algumas ainda me escapam. — Me inclinei, baixando a voz como se contasse um segredo. — Nunca vou te contar onde ficam. Vai que você me mata enquanto durmo. A risada nervosa morreu na minha garganta. O homem, alheio a tudo, permaneceu em coma. Na manhã seguinte, a garagem me chamou. A moto estava esquecida num canto, como um monstro ferido. Olhei para o metal torto, os pneus murchos, e um sorriso de confiança se formou. Separei as ferramentas, comprei as peças na cidade numa rápida viagem de táxi, e mergulhei no conserto. O cheiro de graxa e óleo substituiu o de couro e camomila, e o trabalho manual foi uma terapia inesperada. Quando finalmente dei a chave, o ronco do motor explodiu na garagem como um grito de vitória. Um sorriso genuíno, raro, esticou meus lábios. A liberdade sobre duas rodas estava de volta. Fiz um pequeno passeio triunfal ao redor da casa, sentindo o vento no rosto e o coração mais leve do que em semanas. Estacionei de novo e subi as escadas em espiral, sonhando com um banho quente. Tirei a blusa suja, já pensando na água. O soro. A lembrança bateu como um soco. A bolsa estava quase vazia. Vesti uma camiseta limpa rapidamente e desci as escadas. Abri a porta do quarto, já me preparando para a tarefa. A cama estava vazia. O cobertor, no chão. O soro, desconectado, pingando uma mancha escura. Um arrepio frio percorreu minha espinha. Antes que meu cérebro pudesse processar, uma sombra se moveu ao lado da porta, oculta por uma estante alta. Ele não veio como um furacão. Ele surgiu — silencioso como um pensamento sombrio, preciso como uma lâmina. As mãos firmes agarraram meus braços com uma força impessoal, quase cirúrgica. Fui empurrada contra a porta com brutalidade. O ar escapou dos meus pulmões, mas não houve caos. Apenas o peso de um controle absoluto. O rosto dele estava a centímetros do meu. Os olhos — oh, aqueles olhos! Vermelhos como sangue — não tremiam de medo, mas de algo pior: uma calma antinatural, vazia de emoção. A respiração era rasa, mas ritmada. O cabelo escuro caía sobre a testa úmida, um desalinho quase elegante. — Quem é você? — A voz dele era baixa, sem inflexão, mas o timbre era cortante, afiado. — Onde eu estou? E quem sou eu? Os dedos se cravaram na minha pele como se estivessem avaliando minha estrutura, minha resistência. A dor foi aguda. Mas os olhos dele não perdiam o foco. Ele não era um homem em pânico. Era um predador desorientado, e eu, sua presa. Meu coração batia tão forte que ecoava nos meus ouvidos. Tentei ser a enfermeira — racional, calma. — Calma… — murmurei, a voz trêmula. — Você está seguro… Eu te encontrei… ferido… As palavras escorregaram, sem sentido. — Quem sou eu? — Ele repetiu, mas eu não fazia ideia. Foi nesse silêncio sufocado, nesse encontro de olhos — o vermelho opaco dele nos meus violeta dilatados —, que a porta da frente da casa se abriu com um rangido lento e assustador. Passos pesados e decididos ecoaram no corredor. O homem à minha frente congelou. Ele era como um cão de caça que escuta outro predador se aproximando. Meu pai apareceu. O tempo pareceu estalar. Ele estava mais velho, mais magro, mas os olhos eram os mesmos. Frios. Táticos. Ao ver a cena — o homem me prensando contra a porta —, algo se acendeu nele. Um movimento fluido. A mão mergulhou sob o paletó alinhado e voltou com uma pistola discreta, preta, um prolongamento do próprio braço. O cano apontou direto para a cabeça do homem, sem hesitação. — Solta ela. Agora. — A voz do meu pai era um fio de gelo. Sussurrada. Mortal. Fragmentos de lembrança se remexeram dentro de mim. Sarah. A rua molhada. O beco. O corpo caído. O cheiro de pólvora e sangue. O silêncio depois do tiro. O rosto dela. A verdade que me separou do meu pai como uma fenda irreparável: ele não era apenas frio. Era um assassino. Minha mente se apagou. Numa fração de segundo, torci meu corpo e me joguei para frente, envolvendo o homem com os braços, como um escudo invertido. Segurei a cabeça dele contra o meu peito. O cheiro metálico, sangue, invadiu minhas narinas. Ele não reagiu. Ficou rígido, analisando. Como se estivesse processando o porquê daquele gesto e como poderia usá-lo. Olhei por cima do ombro, direto para a arma, para os olhos de gelo do meu pai. Encarei. Implorei. Menti. — Está tudo bem, pai! — minha voz saiu aguda, forçada, tremendo entre a coragem e o medo. Apertei o homem, fingindo um gesto íntimo, como se fosse um namorado pego de surpresa. Os olhos dele, tão frios quanto os de meu pai, não desviaram dos meus. Eles observavam, calculavam. — Ele é meu namorado.