Capítulo 3

Acordei com a luz cortando as frestas das cortinas pesadas do meu quarto. A cabeça latejava como se martelos pulsassem contra as têmporas, e o gosto amargo do uísque da noite anterior ainda queimava minha garganta. Tentei abrir os olhos, mas cada centímetro do meu corpo parecia implorar por mais sono, por mais esquecimento. Só que a realidade não dava pausas.

Me levantei com esforço, evitando olhar para o lado da cama onde Leonardo costumava dormir. Ele já havia saído, como sempre fazia depois de destruir o que restava entre nós.

Caminhei até o banheiro de mármore branco, onde cada detalhe exalava riqueza — mas nenhuma gota de aconchego. Me encarei no espelho. Os olhos azuis estavam opacos, fundos, e meus cabelos pretos caíam desalinhados sobre os ombros. Respirei fundo, passei água fria no rosto e me obriguei a seguir em frente. Eu não podia me dar ao luxo de fraquejar.

Vestida com um macacão de alfaiataria vinho e saltos pretos, desci para o térreo da mansão. Os funcionários evitaram me encarar diretamente, mas percebi os olhares curiosos. Com certeza haviam escutado a discussão da noite anterior. A casa era grande, mas não à prova de gritos.

Na garagem, o carro já me esperava. E ele também.

Henry estava ao lado do veículo preto, impecável, de óculos escuros, mãos nas costas e postura ereta. Quando me viu, abriu a porta traseira sem dizer uma palavra. Apenas assentiu com a cabeça.

— Bom dia, Henry — murmurei, entrando no carro.

— Bom dia, senhora Macedo — respondeu com aquela voz grave e calma, como se meu mundo desabando fosse apenas mais uma manhã comum.

Durante o trajeto, o silêncio entre nós era espesso. A cidade acordava ao redor, com buzinas, sirenes e o caos habitual. Mas dentro do carro, tudo parecia suspenso. Me peguei observando-o pelo retrovisor algumas vezes. Ele não desviava o olhar da estrada, mas havia algo em seus traços — a forma como seus olhos se apertavam quando o sol batia, ou como suas mãos firmes seguravam o volante — que me prendia. Um tipo de força contida. Seriedade. Concentração.

E mistério.

Ele não era do tipo que falava demais. E talvez fosse exatamente isso que me intrigava.

Na sede da Macedo Investimentos, o prédio envidraçado refletia o céu cinzento da cidade. Era uma das empresas do conglomerado Torres, mas sob meu comando, eu fazia questão de deixar minha marca. Entrei pelo saguão cumprimentando os recepcionistas pelo nome, algo que aprendi a fazer nos primeiros meses como diretora.

— Bom dia, Carla. Como está sua mãe?

— Bem melhor, dona Helena, obrigada por perguntar — respondeu a jovem com um sorriso grato.

Subi para o 15º andar com a postura ereta de quem aprendeu a ser respeitada num mundo dominado por homens. Mas meu coração ainda estava cansado. E em algum lugar dentro de mim, uma dor insistia em pulsar.

Assim que entrei em minha sala, encontrei Marina, minha assistente, já com o cronograma do dia.

— A reunião com os investidores da Alphamax foi remarcada para as dez. E tem visita da auditoria externa às quatorze horas.

Assenti, pegando o café que ela havia deixado sobre minha mesa.

— Prepare a sala de reunião grande. Quero os relatórios atualizados em mãos. E me avise quando o financeiro estiver completo — respondi com firmeza.

Apesar do cansaço, minha mente precisava do trabalho. Era a única coisa que ainda conseguia controlar.

Durante o dia, fiz questão de ouvir os coordenadores de cada setor. Se havia algo que me definia como gestora, era a capacidade de ser generosa e firme ao mesmo tempo. Eu premiava esforço, reconhecia talento, mas não tolerava incompetência. As pessoas que trabalhavam comigo sabiam que, apesar do sobrenome e da fortuna, eu tinha vindo de baixo. E isso me dava autoridade — não herdada, mas conquistada.

Por volta das 13h45, deixei meu escritório para almoçar rapidamente na cafeteria anexa ao prédio. Henry estava encostado ao lado do carro, como sempre, atento.

— Vamos sair? — ele perguntou, quando me aproximei.

— Não. Apenas uma pausa rápida aqui ao lado. Pode me acompanhar até a entrada.

Ele assentiu, e caminhamos juntos.

Na lateral do prédio, a cafeteria era moderna, com tons neutros, e costumava ser frequentada pelos executivos do grupo. Sentei numa mesa afastada e pedi uma salada. Ele ficou de pé, a alguns metros, de braços cruzados, observando tudo com a mesma atenção quase militar.

Foi nesse momento que nossos olhos se cruzaram novamente.

E por alguns segundos... o mundo desacelerou.

Ele sustentou meu olhar sem arrogância, sem desejo explícito. Mas havia algo ali. Uma curiosidade. Um querer saber. Um quase.

Desviei os olhos, engolindo o nó que subia pela garganta.

Não podia.

Não devia.

Não ainda.

O restante do dia passou em ritmo acelerado, e quando saí do prédio, já passava das sete da noite. Henry abriu a porta do carro, e entrei em silêncio. O trajeto de volta foi quase idêntico ao da manhã: quieto, controlado. Mas agora, a tensão era outra. Uma que se instalava lentamente nos espaços não ditos.

Ao chegar em casa, caminhei pelo corredor principal até a sala de estar. Tudo estava no lugar — poltronas alinhadas, tapetes limpos, quadros simétricos. E mesmo assim, parecia vazio. Faltava vida naquela perfeição ensaiada.

Subi para o quarto esperando não encontrar Leonardo.

Mas ele estava lá.

Sentado na poltrona de couro, com um copo de uísque na mão e a cara de quem não se arrependia de nada.

— Que bom que chegou cedo hoje — disse ele, irônico.

— Não vim discutir, Leonardo.

— Então veio pra quê? Mostrar que ainda é a boa moça que tenta fingir que manda alguma coisa? Você só tá nesse cargo porque eu deixei.

Respirei fundo, sem responder.

Ele se levantou e se aproximou.

— Sabe, Helena, eu deveria te admirar por tanto esforço... mas às vezes me pergunto se você é mesmo capaz de sentir alguma coisa além de orgulho.

— E você, Leonardo? Consegue sentir alguma coisa que não seja desejo por outras mulheres?

Ele sorriu de canto, cínico.

— Pelo menos eu não finjo.

Saí do quarto sem dizer mais nada. Na verdade, se eu ficasse mais um segundo ali, choraria. E eu já chorei demais por ele.

Fui para a varanda. A mesma de ontem. Me sentei na mesma poltrona. Mas dessa vez, não peguei o uísque. Apenas fiquei ali, sentindo a noite cair.

E por mais estranho que pareça… pensei em Henry.

No silêncio dele. No olhar. No modo como parecia presente mesmo sem dizer uma palavra.

Fechei os olhos. E, por um instante, desejei que aquele carro nunca mais me levasse de volta para casa.

Mas, no fundo, eu sabia.

Algumas voltas são inevitáveis.

E outras... estão prestes a acontecer.

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