Capítulo 4

Meu nome é Henry Rodrigues. Tenho 28 anos.

Pelo menos… é o que me disseram no hospital, depois do acidente.

Não lembro quem fui. Não sei quem fui. Acordei num quarto branco há três anos com dor na cabeça, o corpo quebrado, e nenhuma memória. A carteira que encontraram comigo estava vazia, sem documento. Um enfermeiro me deu o nome “Henry” porque eu balbuciei isso enquanto delirava na maca. O “Rodrigues” veio depois, na fila do SUS, quando precisei preencher alguma coisa no formulário.

Me deram alta depois de um mês. Fui parar num abrigo. Trabalhei de tudo: ajudante de pedreiro, garçom, segurança. Um dia, um senhor rico que peguei na porta de um evento disse: “Você dirige bem, garoto. Devia ser motorista de alguém importante.” E aquilo ficou comigo. Aprendi a gostar do silêncio atrás do volante. Ali, ninguém precisava saber quem eu era. Ou quem eu deixei de ser.

Mas desde que entrei na vida de Helena Macedo, tudo voltou a doer de um jeito estranho.

Ela tem algo no olhar. Um tipo de dor silenciosa, tão parecida com a minha que me incomoda. Ela é rica, poderosa, e mesmo assim… parece presa. E eu… eu sou livre, mas estou perdido.

O que sinto por ela ainda não tem nome. Só sei que cresce devagar, como uma tempestade se formando no horizonte.

Era sábado à noite quando tudo começou a mudar.

Fui convocado para levar Helena até um evento beneficente, desses de gala, com gente rica, champanhe borbulhante e sorrisos ensaiados. Ela usava um vestido azul-escuro que parecia ter sido pintado no corpo. Cabelos soltos, maquiagem impecável, mas o olhar… distante.

Chegamos ao salão onde o evento ocorria. Eu deveria ficar do lado de fora, mas ela me pediu que a acompanhasse até a entrada. E foi ali, na escadaria iluminada por candelabros dourados, que o vi pela primeira vez.

Leonardo Torres.

O marido.

Alto, bonito, arrogante. Terno sob medida, sorriso sarcástico. Seus olhos castanhos me atravessaram como se eu fosse invisível. E talvez, para ele, eu fosse.

— Então esse é o novo motorista? — perguntou a ela, sem me encarar diretamente. — Achei que tivesse contratado alguém… mais experiente.

— Ele é excelente — respondeu Helena, seca.

Leonardo me observou como um leão que mede sua presa.

— Tem cara de obediente. Isso é bom. Gente pobre costuma saber seu lugar.

Fiquei em silêncio. Um insulto assim merecia resposta, mas meu trabalho exigia controle. E eu aprendi que às vezes, o silêncio é a resposta mais poderosa que se pode dar.

— Seu nome? — ele perguntou, finalmente me olhando nos olhos.

— Henry, senhor.

— Henry... — repetiu, como se estivesse saboreando algo amargo. — Nome de mordomo de filme antigo.

Sorri de leve.

— Prefiro pensar que é nome de alguém que sobreviveu.

Helena desviou o olhar, visivelmente desconfortável. E naquele instante, entendi: ela era humilhada por ele constantemente. Mas não na frente das câmeras. Era nos bastidores, nas entrelinhas. Ele a quebrava em pedaços, e ela recolhia um por um tentando manter tudo de pé.

Fiquei observando enquanto os dois subiam as escadas. Ela andava com classe, mas havia algo nos ombros dela… uma tensão constante, como se carregasse o mundo. E talvez carregasse.

À noite, de volta à mansão, fui até a garagem desligar o carro e percebi uma movimentação estranha na ala externa. Parecia uma discussão. Me aproximei discretamente.

— Eu vi o jeito que você olhou pra ele — disse Leonardo, a voz carregada de raiva.

— Do que está falando? — respondeu Helena, firme.

— Do seu motoristazinho. Quer dar uma de coitada, de esposa traída, mas mal começou a andar com ele e já ficou molhada. Cuidado, Helena. Eu não sou idiota.

— Não, Leonardo. Você é cruel. E medíocre.

Silêncio.

— Cuidado — ele disse, baixinho. — Eu ainda sou o pilar da sua família. Seus irmãozinhos só têm o negócio deles porque eu banquei. E seus pais vivem bem porque eu permito.

Virei as costas. Aquilo não era da minha conta. Mas me corroía por dentro.

Ela merecia mais.

No dia seguinte, acordei cedo como sempre. Fui até a garagem e revisei o carro. Helena saiu às 6h50, vestindo um tailleur cinza e óculos escuros. Entrei no carro e, enquanto dirigia, fiquei pensando: o que a mantém com ele? Por que ela simplesmente não vai embora?

A resposta veio rápida. Ele sustenta os pais dela. Os irmãos. Ela está presa por dever. Por culpa. Por amor… não.

Não.

Amor não tem aquele olhar vazio que ela carrega.

Em outra parte da cidade, muito longe do mundo de Helena e Leonardo, uma mulher de cabelos grisalhos se debruçava sobre um álbum de fotos.

— Ele ainda está vivo. Eu sinto — disse, a voz embargada.

— Mãe, já se passaram três anos… — o filho mais velho respondeu, puxando uma cadeira ao lado dela.

— Eu não enterrei meu filho. Não houve corpo. A polícia desistiu, mas eu não.

Na página aberta do álbum, uma foto: eu. Ou melhor… o homem que eu era. Terno preto, sorriso largo, entre dois irmãos mais velhos. Atrás de nós, o letreiro: Rodrigues e Filhos — Engenharia de Futuro.

Eu era Henry Rodrigues, herdeiro de uma das maiores empresas de engenharia civil do Brasil. Mas ninguém sabia onde eu estava. Ninguém me reconheceu porque meu rosto ficou parcialmente ferido no acidente, e com o passar do tempo, as buscas cessaram. A mídia esqueceu. E eu também.

Minha família acha que morri.

E eu… vivo como se nunca tivesse existido.

Enquanto estacionava na frente do prédio da Macedo Investimentos naquela manhã, olhei pelo retrovisor. Helena me observava. Não de forma óbvia, mas como quem busca algo em silêncio.

— Obrigada, Henry — disse, ao sair.

Assenti. Não respondi.

Porque se eu dissesse qualquer coisa, talvez dissesse demais.

E ainda não era hora.

Naquele dia, à noite, enquanto limpava o carro na garagem silenciosa, olhei para meu reflexo no capô polido e pensei: quem sou eu? O homem que a família perdeu ou o homem que ela está começando a encontrar?

Porque, por mais que ela tentasse esconder… eu via. No modo como olhava pela janela quando achava que eu não estava prestando atenção. No tom da voz quando me agradecia. No alívio quase imperceptível quando eu aparecia para buscá-la, como se minha presença significasse algo bom num mundo cheio de dores.

E eu sentia.

Sentia que ela também estava perdida.

Talvez fosse isso que nos unia.

Mas entre nós, havia um muro.

E o nome dele era Leonardo Torres.

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