Sarah não dormiu naquela noite. O bilhete repousava sobre o criado-mudo, ao lado de um exemplar surrado de As Flores do Mal que ela havia procurado desesperadamente numa livraria de rua.
O perfume de Thomas — amadeirado, discreto e quase hipnótico — ainda impregnava o papel.
Ela o leu tantas vezes que a tinta começou a desbotar sob o toque dos dedos:
Leia Baudelaire. Amanhã, traga algo que o poema “O Veneno” lhe faça sentir.
— T.
Naquela madrugada, entre goles de vinho barato e versos sublinhados, Sarah percebeu que não era apenas curiosidade. Era uma inquietação doce, febril — um tipo de veneno que agia devagar, dissolvendo o que ela acreditava ser controle.
A manhã seguinte nasceu cinza, chuvosa.
O campus da universidade parecia envolto por uma névoa úmida, e cada passo de Sarah ecoava como um segredo.
No auditório, poucos alunos já se acomodavam. No centro da mesa, Olivia Ward arrumava os papéis do professor.
Usava um tailleur preto impecável, batom escarlate e um olhar que podia cortar vidro.
— Veio cedo — disse Olivia, sem sorrir.
— Sim, queria revisar o texto.
— Baudelaire — murmurou Olivia, inclinando-se levemente. — Nem todos conseguem suportar a honestidade dele.
Sarah tentou decifrar o tom, mas não teve tempo.
A porta se abriu.
Thomas Walsh entrou com a tranquilidade de quem comanda o tempo.
O terno cinza-escuro, a gravata perfeitamente alinhada, o olhar inabalável.
O murmúrio da sala cessou como se o ar obedecesse.
— Hoje falaremos sobre o veneno do prazer — anunciou ele, pousando um livro sobre a mesa.
— Baudelaire acreditava que o desejo é uma forma de intoxicação voluntária.
Olivia fechou as cortinas, deixando a sala mergulhar numa penumbra elegante.
Apenas a luz suave das lâmpadas incidia sobre a mesa e o rosto de Thomas.
Ele abriu o livro.
A voz dele — grave, precisa, lenta — preencheu o espaço:
“O veneno que corre em minhas veias
não mata — adoça.
É febre que consola,
dor que implora mais dor.”
Silêncio.
Sarah sentiu o corpo inteiro reagir àquela cadência.
Não sabia se era a poesia ou a voz dele, mas havia algo quase físico no modo como as palavras tocavam a pele.
— Senhorita Hastings — disse Thomas, quebrando o silêncio. — Leu o poema?
— Sim.
— E o que ele lhe fez sentir?
Todos os olhares voltaram-se para ela.
Sarah hesitou, sentindo o coração martelar.
— Senti… como se o amor fosse uma forma bonita de se perder.
Thomas a observou por longos segundos.
— Perder-se pode ser belo, se houver alguém disposto a encontrá-la.
Um leve murmúrio percorreu a sala.
Olivia desviou o olhar, rígida.
Thomas fechou o livro com delicadeza.
— Tarefa para todos: escolham uma metáfora de Baudelaire e a transformem em imagem. Amanhã, trarão algo visual — um desenho, uma foto, uma composição.
Enquanto ele falava, Sarah ainda sentia o olhar dele preso nela.
E quando os alunos começaram a sair, uma folha caiu discretamente da pasta de Thomas aos seus pés.
Sarah se abaixou para pegar.
Era uma fotografia antiga — uma mulher nua, deitada em lençóis escuros, o rosto parcialmente coberto.
Atrás, uma única frase escrita à mão:
“Tudo o que é proibido, ensina.”
Antes que pudesse reagir, Olivia se aproximou e tirou a foto de sua mão com um sorriso que não alcançava os olhos.
— Essa não é para você.
Thomas levantou o olhar.
Por um instante, os três permaneceram em silêncio — um triângulo de intenções não ditas.
Então ele quebrou o clima com a mesma voz serena:
— Senhorita Hastings, fique mais um instante, por favor.
Os outros alunos saíram. Olivia recolheu os papéis lentamente, fingindo não ouvir, e deixou a sala.
Thomas se aproximou da mesa da primeira fileira.
A chuva batia nas janelas com ritmo constante.
— Gostaria de saber o que realmente sentiu, não o que acha que deveria dizer. — Os olhos dele prenderam os dela. — O veneno de Baudelaire… tem gosto de quê, para você?
Sarah engoliu em seco.
— De medo, talvez.
— E prazer?
— Os dois.
Thomas sorriu — um gesto quase imperceptível.
— Excelente resposta.
Ele estendeu a mão e colocou diante dela um envelope preto.
— Dentro há um convite. Não é obrigatório aceitá-lo.
— Convite para o quê?
— Para ver o que há por trás da palavra “desejo”.
Sarah olhou para o envelope sem tocá-lo.
O nome dela estava escrito em tinta dourada.
Thomas deu um passo para trás.
— Traga-o amanhã, selado. Se abrir, o convite se torna compromisso.
Ele saiu da sala, deixando o eco da voz e o perfume no ar.
Sarah segurou o envelope entre os dedos, o coração acelerado.
A superfície do papel parecia pulsar, quente.
Do lado de fora, viu Olivia parada no corredor, observando-a em silêncio.
O sorriso da mulher era leve, mas o olhar dizia tudo:
Você não sabe no que está se metendo.
Sarah desceu as escadas lentamente, o envelope pressionado contra o peito.
Não sabia se o abriria.
Mas já sabia, com absoluta clareza, que não havia mais volta.
O convite selado — um símbolo de escolha, desejo e perigo.